APRENDENDO DIREITO CIVIL A PARTIR DE HELENA...
Bom, numa das postagens anteriores eu mencionei categoricamente que é possível aprender Direito através da Literatura Clássica...Alguém conhece um livro intitulado Helena? Não? Isso é bem grave em termos de conhecimentos gerais....mas perdoável, já que esse não é o livro mais consagrado de Machado de Assis, tampouco, foi o livro que marcou definitivamente seu papel na literatura brasileira. Mas....
O livro narra a história de Helena e Estácio, dois irmãos que só descobrem essa condição após a morte de seu pai. A existência de Helena somente é descoberta pela família de Estácio quando seu pai falece deixando um testamento no qual reconhece Helena como filha, indicando o local onde ela pode ser encontrada e seu último desejo: o acolhimento dessa filha no seio da família...
Do reconhecimento de Filhos
Ops...espera aí, a história se passa em 1850! Reconhecer filhos através de testamento???? Isso era possível? Sim, essa forma de reconhecimento de paternidade existe até hoje. Qual é o advogado ou mesmo estudante que ainda não ouviu falar no teor do artigo 1.609 do Código Civil de 2002?
Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I - no registro do nascimento;
II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.
Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento.
Percebam, já nas primeiras páginas dessa deliciosa e surpreendente história já é possível aprender alguma coisa.
Pois bem, a história começa a se desenvolver no momento em que os irmãos enfim se conhecem e acabam por sentir mútua atração, que tentam repelir e surpreendentemente, no decorrer do livro, Estácio descobre que Helena não é sua irmã. Essa descoberta se dá em razão das saídas suspeitas da moça, o que leva Estácio a descobrir que a irmã não se encontra com um amante, mas sim, com o seu verdadeiro pai...
A partir de então, o leitor passa a torcer para que o casal termine a história juntos e felizes para sempre, o que infelizmente não acontece por causa da morte de Helena.
Dos Impedimentos Matrimoniais
Ops. Se Helena não tivesse morrido o casal poderia legalmente se casar? Legalmente, não são considerados irmãos pelo reconhecimento voluntário do pai de Estácio?
Não. É claro que Estácio e Helena, ao menos em princípio, não poderiam se casar, esbarrariam no impedimento constante do artigo 1.521,CC
Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Ora ora, é uma pena...Mas Estácio e Helena seriam impedidos de se casar nos dando um belo final feliz a essa história...
E o nosso aprendizado não para por aí. É que no decorrer do livro nós passamos a entender a complicada história da heroína, fruto de um amor renegado pelas famílias de seus pais. O pai de Helena ao assumir as consequencias de seu relacionamento com uma mulher considerada inadequada por sua família, acaba por romper com seus parentes. Contudo, por ocasião da doença de seu pai (avô de Helena), ele precisa voltar a cidade natal para liquidar os negócios da família, e é nesse ínterim que a mãe de Helena se apaixona pelo pai de Estácio, que é rico e se afeiçoa muito à criança a ponto de reconhecê-la em testamento como filha.
Até aí tudo bem. Por que o verdadeiro pai de Helena no final das contas aceita que ela seja dada como filha de outro homem? Porque ele próprio acaba reduzido a uma condição de miserabilidade. E nessa parte da história ele mesmo fala que os poucos bens deixados por sua família acabaram ficando para os credores...
Ops...Para os credores? É possível que uma pessoa morra e todos os seus bens fiquem para seus credores? Sim. É perfeitamente possível. Vejamos:
De acordo com os princípios norteadores do Direito, o que responde pelas nossas dívidas é o nosso patrimônio. Pois bem, uma dívida não paga sujeita nossos bens a expropriação. É claro que tal expropriação não vai acontecer de forma arbitrária, é necessária a intervenção do judiciário. Uma dívida consubstanciada em documento que tenha força de título executivo extrajudicial (rol do artigo 585 CPC) permite ao credor a propositura de uma ação de execução, na qual, a primeira providência do juiz é determinar a citação do devedor para pagar em três dias sob pena de penhora de bens.
Por outro lado, quando a dívida está consubstanciada em documento que não tenha força de título executivo extrajudicial, caberá ao credor propor uma ação de cobrança no intuito de que o Estado declare, por meio de sentença, a existência de uma relação jurídica entre o credor e o devedor que permita o avanço sobre o patrimônio deste último em caso de inadimplência. (O que nós chamamos de processo de conhecimento)
Pois bem, uma vez comprovada por sentença a obrigação, temos o surgimento do título executivo judicial, sendo certo que o próximo passo do credor é promover o respectivo cumprimento da sentença, nova fase do processo de conhecimento. Nessa fase, a primeira providência do juiz é determinar a penhora dos bens do devedor, e após regular trâmite processual é realizada a expropriação desses bens penhorados.
Bom, após essa breve explanação, nós já compreendemos que o patrimônio responde pelas nossas dívidas. Agora, será que continuamos responsáveis por dívidas mesmo após a morte?
Do Direito Sucessório
Alguém já ouviu falar em princípio da Saisine? Está expresso lá no artigo...
Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
O que ocorre no momento da morte do "de cujus", é que toda a herança se transmite aos herdeiros. Em outras palavras, o Princípio da Saisine é o responsável por transmitir a posse e a propriedade de todos os bens do "de cujus" no segundo posterior à sua morte, mesmo que os herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, ignorem o ocorrido (óbito).
A formalização da transferência do patrimônio entre o falecido e seus herdeiros se inicia através da abertura do processo de inventário, no qual são levantados os bens e as dívidas deixados pelo falecido. Pois bem, morrendo um devedor, é possível que qualquer um dos credores requeira a abertura do inventário habilitando seus respectivos créditos, sendo certo que os herdeiros serão responsáveis pelo pagamento das dívidas do falecido até o montante do que receberem de herança.
Caso o credor não tenha se habilitado no inventário e o herdeiro tenha recebido sua herança tranquilamente, esse credor preterido poderá cobrá-la do herdeiro, contudo, nesse caso, o herdeiro somente estará obrigado a pagar a dívida até o limite do que tenha herdado. Ex. se uma pessoa herdou R$ 20.000,00, ainda que a dívida do autor da herança seja de R$ 40.000,00, somente estará obrigada ao pagamento de R$ 20.000,00. É o que dispõe o artigo 1997 do Código Civil.
Caso o credor tenha se habilitado nos autos do inventário, “automaticamente”, receberá a herança no lugar do herdeiro até o montante do que seja necessário para saldar sua dívida.
Portanto, se uma pessoa falece deixando considerável patrimônio, mas proporcional número de dívidas é perfeitamente possível que todo o seu patrimônio fique para os credores...
Sensacional! Você fez a coisa toda parecer interessante até pra um cara que não entende bulhufas de direito. Parabéns!
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