segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

APRENDENDO DIREITO CIVIL A PARTIR DE MATÉRIA DE MEMÓRIA - CARLOS HEITOR CONY

Olá meus queridos! Nós temos comentado bastante a respeito de literatura clássica, mas temos ótimas histórias contemporâneas que também podem nos enriquecer em vários sentidos, não apenas nos tornando mais críticos e sensíveis, mas verdadeiramente nos transmitindo importantes informações jurídicas. Uma das minhas melhores dicas é o livro Matéria de Memória do escritor Carlos Heitor Cony. A história é muito interessante, vejamos:

Tino, Julinha, Selma e João, quatro personagens que compõem essa trama surpreendente na qual, todos vivem a mesma realidade sob percepções bem diferentes. Tino é marido de Julinha e genro de Selma, mãe de João e de Julinha. Nosso herói Tino é um personagem marcado por tragédias familiares (quase abusado sexualmente na infância e punido por machucar o agressor, criado com a madrasta que tem um caso com seu irmão).  É um pintor decadente de meia idade, que busca nas mulheres, ou melhor, no sexo, uma fuga para suas frustrações.

Tino se casa com Julinha, mas passa a nutrir secreta paixão por Selma, uma mulher meia idade, linda, razoavelmente abastada e mal-amada, que corresponde secretamente ao sentimento do genro. O interessante, contudo, é que Tino e Selma são personagens tão complexos que todas as suas atitudes são interpretadas de forma contrária sob os pontos de vista de ambos. Tino se sente tão frustrado e com baixa autoestima que julga não ser merecedor de nada além do desprezo de Selma. Selma, por sua vez, é uma mulher acostumada a ser vista apenas como objeto sexual para os homens e vive entre o desejo pelo genro e a culpa por, de certa forma, estar traindo a filha. Igualmente, julga não ser correspondida por Tino.

João por sua vez, também é filho de Selma e embora não tenha sido o predileto foi criado com o amor da mãe e o desprezo do pai. Cresce submerso em diversos conflitos desenvolvendo em certo ponto "síndrome de Édipo" pela mãe.

É bastante interessante que Selma e Tino ignorem a reciprocidade de seu desejo, que é conhecido por João e pela própria Julinha, mulher de 20 anos e saúde frágil que acaba morrendo no decorrer da história, deixando o caminho livre para os nossos protagonistas, que mesmo assim, jamais se realizam.

A grande mensagem desse livro, ao menos sob o meu ponto de vista, é que a mesma realidade pode ser interpretada ou vivida de formas diferentes dependendo da compreensão de seus protagonistas. Em verdade, somos todos personagens, somos todos protagonistas de nossas vidas reais e agimos e nos comportamos de acordo com nossas próprias percepções da realidade, não raro, equivocadas. Viveríamos certamente melhor, se encarássemos que nada pode ser menos absoluto do que a verdade.

 Tino pensa sobre o comportamento de Selma:

"...Na escala da minha cobiça, logo depois dos braços e dos olhos, vinham as pernas dela, fortes, cheias. Eu preferia qualquer coisa de abominável na minha vida, menos que ela suspeitasse da realidade do meu desejo.
Lá sei por quê, nunca imaginou o quanto poderia me excitar . Com a vida em comum que levávamos, muitas vezes a vi quase nua. Sentava diante de mim como seu eu fosse uma criança ou um impotente. Uma tarde, quando estava de saída, ao chegar à porta, levantou a saia para ajeitar a meia que se desprendera da liga. Suas pernas eram monumentais quando usava saltos altíssimos....Eu a comia com os olhos, ela nem olhava para trás..."

João interpreta o comportamento da mãe:

"Eu fingia ler o tal relatório sobre a situação do campesinato no Nordeste - era um dos temas recorrentes no Partido - mas percebia tudo. A mãe desceu, a saia colante estourando de carnes, Tino olhou desvairado para o corpo dela, envolvendo-o num desejo feroz, cheio de ódio.
Antes de sair - e como sempre fazia quando Tino estava perto - levantou a saia a pretexto de ajeitar a cinta-liga que prendia as meias. Tino bebeu um gole de uísque enquanto olhava aquelas pernas, ela fazia aquilo para provocá-lo. Ambos me ignoravam e a mãe exagerou ao levantar a saia, via aquela parte nua de coxas, não cobertas pelas meias que subiam até um pouco acima dos joelhos. Naquele instante senti um calor estranho de mim. Descobri, com nojo, que era capaz de desejar a mãe..."

Selma se comporta e anseia:

"...Fingia sempre uma atitude indiferente, ou entediada. Era importante que ele não suspeitasse. Que ignorasse o meu desejo, que eu o queria para mim com as minhas forças, as naturais e as artificiais..."
"Depois da morte de Julinha, numa primeira avaliação julguei-o livre para mim. Eu o tinha de certo modo, seria uma questão de tempo e oportunidade.
O tempo passou e a oportunidade não veio. Toquei para frente - foi a forma de esquecer, de não andar para trás..."

Bom, muito bom analisar a mensagem que o autor nos transmitiu, contudo, além da mensagem evidente o autor nos mostra também que possui conhecimentos jurídicos prévios... Vejamos:

Primeiramente, é importante considerar que Selma é sogra de Tino, marido de Julinha que vem a falecer. Selma e Tino poderiam se casar? Bem, juridicamente, é certo que jamais poderiam concretizar uma relação através do casamento. É que de acordo com o artigo 1.521, inciso II do Código Civil “não podem casar os afins em linha reta”. Já, o § 2 do artigo 1595 é expresso ao dispor que “Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável”.

Pois bem, o parentesco pode ser natural ou por afinidade, sendo certo que o parentesco natural é decorrente de laços sanguíneos e o parentesco por afinidade decorrente de laços legais. Pais e filhos são parentes consangüíneos, portanto, ligados por um parentesco natural. Já, sogras e genros são parentes por afinidade, ou seja, seu parentesco se originou por uma causa legal que foi o casamento de seus filhos. Tais pessoas, uma vez ligadas, seu parentesco não se extinguirá nem mesmo com a dissolução do casamento.

Vale lembrar que parentes em linha reta são aqueles ligados pela relação ascendente e descendente. Pais e filhos são parentes em linha reta.

Já, parentes colaterais, são aqueles que descendem do mesmo tronco, mas que não descendem um do outro. Irmãos, portanto, são parentes colaterais.
Percebemos que o impedimento matrimonial se refere apenas a parentes em linha reta, sogros e genros. Na linha colateral, uma vez dissolvido o vínculo, poderão ex-cunhados, por exemplo, se casar livremente. Ana é casada com João irmão de Marcos. Ana, uma vez divorciada de João é livre para casar com Marcos.

Direito Sucessório

A contribuição de nossos heróis não para por aí. Dêem uma olhada no seguinte trecho, no qual Selma comenta:

“Depois que Julinha morreu, ele (Tino) quis ir embora, montar um apartamento para nele se instalar com suas telas e tintas. O advogado aconselhou-nos a não abrir o inventário, seriam necessários dois processos, o de André, que deixara bens para Julinha, e o da própria Julinha. O melhor seria não mexermos no monte, renderia mais, não haveria impostos a pagar. Eu recebia todas as rendas, quis dividi-las com ele. Não aceitou. Nada queria receber da parte que cabia à mulher dele.”

Vejam, André era pai de Julinha, personagem coadjuvante que morre no decorrer da narrativa. Pois bem, se André era marido de Selma e pai de Julinha e João, é óbvio que essas três pessoas seriam seus herdeiros. Ao que o livro indica não foi aberto inventário de André, por isso, todos os bens por ele deixados permaneceram em condomínio, ou seja, passaram a pertencer aos três herdeiros conjuntamente. Metade de tudo para Selma e a outra metade divida entre os irmãos.

Com a morte de Julinha, que não deixou filhos, de que forma se faria a sucessão? Considerado seu casamento com Tino, nos termos do artigo 1.829, CC, a sucessão legítima se defere numa ordem segundo a qual, morrendo uma pessoa casada e sem filhos, consideram-se seus herdeiros os ascendentes e o cônjuge. Portanto, são herdeiros de Julinha, Selma e Tino.

Contudo, no caso do livro, para que fosse realizada a divisão justa de bens seria preciso definir com exatidão o montante dos bens de Julinha, o que somente seria possível computando-se os bens que caberiam a ela pela herança de seu pai, daí, a necessidade de dois processos, o que hoje se faz através do que chamamos de inventário conjunto. Certamente seria bastante trabalhoso e envolveria o pagamento impostos como ITD (imposto de transmissão sobre doação e causa mortis”), além de proporcionar uma provável briga pela venda de bens e divisão dos montantes.

E quanto aos rendimentos dos bens? Selma deveria de fato, dividi-los com Tino? Certamente, se tais rendimentos forem provenientes de bens que seriam herdados por Tino, a divisão seria medida perfeitamente justa.

Por certo, a orientação de nosso advogado fictício de optarem pela não abertura do inventário traz vantagens e desvantagens à família. Se por um lado, retarda o pagamento de impostos e garante o rendimento dos bens, por outro lado, mantém esses bens em condomínio, prolongado-se um perigoso vínculo entre pessoas que não mais mantém nenhuma relação, como sogros e genros, além, é claro, de desvalorizar os bens que não podem ser regularmente vendidos sem a abertura do inventário.

Por hoje é só, esperam que tenham gostado.



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

DIVAGAÇÕES SENTIMENTAIS

As vezes eu fico pensando ser sensível é bom mas também tem um lado ruim de vez em quando, temos um olhar mais crítico em relação a tudo o que acontece ao nosso redor, mas também somos muito muito mais suscetíveis aos acontecimentos do dia-a-dia. A gente nunca espera que as pessoas façam com a gente o que nós nunca seríamos capazes de fazer com elas....

Sempre que nós tentamos ajudar alguém temos que estar preparados para uma possível ingratidão...afinal só sofremos ingratidão porque tentamos ajudar...Mas as pessoas mudam....nossos conhecidos, nossos amigos, cônjuges, namorados, etc... estão sempre mudando...

Como será que a gente faz pra viver com alguém que é uma pessoa às 6:37 da noite e outra às 11:16? Realmente, não dá pra entender.
APRENDENDO DIREITO CIVIL A PARTIR DE HELENA...

Bom, numa das postagens anteriores eu mencionei categoricamente que é possível aprender Direito através da Literatura Clássica...Alguém conhece um livro intitulado Helena? Não? Isso é bem grave em termos de conhecimentos gerais....mas perdoável, já que esse não é o livro mais consagrado de Machado de Assis, tampouco, foi o livro que marcou definitivamente seu papel na literatura brasileira. Mas....

O livro narra a história de Helena e Estácio, dois irmãos que só descobrem essa condição após a morte de seu pai. A existência de Helena somente é descoberta pela família de Estácio quando seu pai falece deixando um testamento no qual reconhece Helena como filha, indicando o local onde ela pode ser encontrada e seu último desejo: o acolhimento dessa filha no seio da família...

Do reconhecimento de Filhos

Ops...espera aí, a história se passa em 1850!  Reconhecer filhos através de testamento???? Isso era possível? Sim, essa forma de reconhecimento de paternidade existe até hoje. Qual é o advogado ou mesmo estudante que ainda não ouviu falar no teor do artigo 1.609 do Código Civil de 2002?

Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I - no registro do nascimento;
II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.

Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento.

Percebam, já nas primeiras páginas dessa deliciosa e surpreendente história já é possível aprender alguma coisa.

Pois bem, a história começa a se desenvolver no momento em que os irmãos enfim se conhecem e acabam por sentir mútua atração, que tentam repelir e surpreendentemente, no decorrer do livro, Estácio descobre que Helena não é sua irmã. Essa descoberta se dá em razão das saídas suspeitas da moça, o que leva Estácio a descobrir que a irmã não se encontra com um amante, mas sim, com o seu verdadeiro pai...
A partir de então, o leitor passa a torcer para que o casal termine a história juntos e felizes para sempre, o que infelizmente não acontece por causa da morte de Helena.

Dos Impedimentos Matrimoniais

Ops. Se Helena não tivesse morrido o casal poderia legalmente se casar? Legalmente, não são considerados irmãos pelo reconhecimento voluntário do pai de Estácio?

Não. É claro que Estácio e Helena, ao menos em princípio, não poderiam se casar, esbarrariam no impedimento constante do artigo 1.521,CC

Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Ora ora, é uma pena...Mas Estácio e Helena seriam impedidos de se casar nos dando um belo final feliz a essa história...

E o nosso aprendizado não para por aí. É que no decorrer do livro nós passamos a entender a complicada história da heroína, fruto de um amor renegado pelas famílias de seus pais. O pai de Helena ao assumir as consequencias de seu relacionamento com uma mulher considerada inadequada por sua família, acaba por romper com seus parentes. Contudo, por ocasião da doença de seu pai (avô de Helena), ele precisa voltar a  cidade natal para liquidar os negócios da família, e é nesse ínterim que a mãe de Helena se apaixona pelo pai de Estácio, que é rico e se afeiçoa muito à criança a ponto de reconhecê-la em testamento como filha.

Até aí tudo bem. Por que o verdadeiro pai de Helena no final das contas aceita que ela seja dada como filha de outro homem? Porque ele próprio acaba reduzido a uma condição de miserabilidade. E nessa parte da história ele mesmo fala que os poucos bens deixados por sua família acabaram ficando para os credores...

Ops...Para os credores? É possível que uma pessoa morra e todos os seus bens fiquem para seus credores? Sim. É perfeitamente possível. Vejamos:

De acordo com os princípios norteadores do Direito, o que responde pelas nossas dívidas é o nosso patrimônio. Pois bem, uma dívida não paga sujeita nossos bens a expropriação. É claro que tal expropriação não vai acontecer de forma arbitrária, é necessária a intervenção do judiciário. Uma dívida consubstanciada em documento que tenha força de título executivo extrajudicial (rol do artigo 585 CPC) permite ao credor a propositura de uma ação de execução, na qual, a primeira providência do juiz é determinar a citação do devedor para pagar em três dias sob pena de penhora de bens.

Por outro lado, quando a dívida está consubstanciada em documento que não tenha força de título executivo extrajudicial, caberá ao credor propor uma ação de cobrança no intuito de que o Estado declare, por meio de sentença, a existência de uma relação jurídica entre o credor e o devedor que permita o avanço sobre o patrimônio deste último em caso de inadimplência. (O que nós chamamos de processo de conhecimento)

Pois bem, uma vez comprovada por sentença a obrigação, temos o surgimento do título executivo judicial, sendo certo que o próximo passo do credor é promover o respectivo cumprimento da sentença, nova fase do processo de conhecimento. Nessa fase, a primeira providência do juiz é determinar a penhora dos bens do devedor, e após regular trâmite processual é realizada a expropriação desses bens penhorados.
Bom, após essa breve explanação, nós já compreendemos que o patrimônio responde pelas nossas dívidas. Agora, será que continuamos responsáveis por dívidas mesmo após a morte?

Do Direito Sucessório

Alguém já ouviu falar em princípio da Saisine? Está expresso lá no artigo...

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

O que ocorre no momento da morte do "de cujus", é que toda a herança se transmite aos herdeiros. Em outras palavras, o Princípio da Saisine é o responsável por transmitir a posse e a propriedade de todos os bens do "de cujus" no segundo posterior à sua morte, mesmo que os herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, ignorem o ocorrido (óbito).

A formalização da transferência do patrimônio entre o falecido e seus herdeiros se inicia através da abertura do processo de inventário, no qual são levantados os bens e as dívidas deixados pelo falecido. Pois bem, morrendo um devedor, é possível que qualquer um dos credores requeira a abertura do inventário habilitando seus respectivos créditos, sendo certo que os herdeiros serão responsáveis pelo pagamento das dívidas do falecido até o montante do que receberem de herança.

Caso o credor não tenha se habilitado no inventário e o herdeiro tenha recebido sua herança tranquilamente, esse credor preterido poderá cobrá-la do herdeiro, contudo, nesse caso, o herdeiro somente estará obrigado a pagar a dívida até o limite do que tenha herdado. Ex. se uma pessoa herdou R$ 20.000,00, ainda que a dívida do autor da herança seja de R$ 40.000,00, somente estará obrigada ao pagamento de R$ 20.000,00. É o que dispõe o artigo 1997 do Código Civil.

Caso o credor tenha se habilitado nos autos do inventário, “automaticamente”, receberá a herança no lugar do herdeiro até o montante do que seja necessário para saldar sua dívida.

Portanto, se uma pessoa falece deixando considerável patrimônio, mas proporcional número de dívidas é perfeitamente possível que todo o seu patrimônio fique para os credores...

DIVAGAÇÕES...BENTINHO TERIA SE SUBMETIDO A UM EXAME DE DNA?

Essa semana eu estive pesquisando outros blogs que abordassem a relação entre Direito e Literatura e achei um comentário interessante a respeito do livro Dom Casmurro. O personagem Dom Casmurro passa a vida se consumindo em razão de uma possível traição de Capitu, seu grande amor, bem como por uma possível falsa paternidade de seu filho, cujos traços, sua própria desconfiança o leva a considerar como parecidos aos do melhor amigo, possível rival.
Bentinho, permite que uma desconfiança se instale de tal modo em sua mente e coração que passa a viver infeliz, daí, li um comentário no referido blog, que tentava fazer uma abordagem jurídica sobre o tema, no sentido de que se existisse o exame de DNA na época em que se passa a história os problemas de Bentinho estariam resolvidos...
Não sei, sinceramente, não sei se Machado de Assis criou um personagem que pretendesse chegar a uma verdade real. Será que Bentinho teria "tirado a limpo" a traição de Capitu se tivesse oportunidade? Talvez o leitor que se sinta íntimo da obra de Machado, vá considerar perfeitamente plausível que ele tenha criado um personagem que encontrasse prazer na própria desconfiança, um personagem que encontrasse prazer na própria infelicidade... percebemos que a loucura de Bentinho é tamanha que ele chega ao ponto de cogitar a morte da própria criança...
Se pararmos para analisar, pessoas que preferem a infelicidade por medo da felicidade são mais comuns do que se pensa...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ASPECTOS JURÍDICOS NA LITERATURA CLÁSSICA

Já que estamos falando de sensibilidade jurídica, característica cada vez mais rara, por que não pensar na literatura como um importante instrumento aguçador de nossa sensibilidade? Por que não analisar a sensibilidade jurídica de Machado de Assis, por exemplo?

Sabemos que Machado de Assis não era advogado, passou a vida como funcionário público e jornalista, tendo sido amigo de grandes advogados como José de Alencar. De fato, a presença de bacharéis em Direito é recorrente em sua literatura, muitos de seus mais famosos personagens são advogados. Será que isso nos revela alguma coisa sobre o autor?

Seria tal carreira um desejo secreto do famoso "bruxo"? Não causa estranheza, que Machado de Assis, mulato, neto de escravos e de origem humilde não tenha conseguido realizar todos os seus sonhos. Conjeturas a parte, não restam dúvidas de que é possível aprender Direito através da obra de Machado de Assis...sim. Alguém duvida? Aguardem só até a próxima postagem...

TUTELA ANTECIPADA É QUESTAO TAMBÉM DE SENSIBILIDADE

Alguém tem dúvidas que de que além do periculum in mora, verossimilhança das alegações, prova inequívoca, a concessão da tutela antecipada ainda pressupõe o requisito da sensibilidade do juiz? Dêem uma olhada nesse caso.
No ano passado, por  volta do mês de julho vivenciei uma questão bastante interessante na minha vida profissional, na qual a sensibilidade do magistrado foi fundamental para a concessão de uma decisão justa.
Meu escritório patrocinava uma ação de concessão de benefício previdenciário em face da RIOPREVIDÊNCIA, na qual uma senhora de 91 anos pretendia a pensão por morte deixada pelo filho, falecido cinco anos antes sem herdeiros menores e sem cônjuge.
De imediato, soubemos que o caso não seria fácil, pois concessão de pensão por morte a ascendentes, como se sabe, pressupõe comprovação de dependência econômica entre o autor da pensão e o respectivo ascendente. Ora, passados cinco anos do falecimento de alguém sem que tenha havido qualquer pedido de pensão nesse período, se torna bem difícil comprovar essa dependência.

Contudo, o caso apresentava algumas peculiaridades. Primeiramente, a família nos informou a contratação de um advogado anterior que teria feito uma ação de exibição de documentos. É que por ocasião do falecimento do autor da pensão, sua ex-esposa, da qual o falecido já era separado judicialmente, pretendia se beneficiar da pensão e por isso reteve os documentos necessários para que a mãe do falecido pudesse se habilitar junto a RIOPREVIDÊNCIA e requerer administrativamente o benefício, daí, a primeira demora.
Posteriormente, de posse dos documentos do de cujus, esse mesmo advogado, após a recusa administrativa da RIOPREVIDÊNCIA, propôs uma ação de obrigação de fazer contra o Estado do Rio de Janeiro (?), processo que estava parado há muitos meses.
Pois bem, foi nessa situação que o caso nos foi apresentado, cinco anos depois da morte do autor da pensão. Após análise do processo em curso, optamos pela sua desistência e propositura de um outro processo, dessa vez contra a própria RIOPREVIDENCIA, que possui personalidade jurídica própria, pleiteando em sede de tutela antecipada a concessão do benefício.
A despeito de toda argumentação invocada, principalmente com relação a idade da autora, a antecipação foi negada, decisão mantida em agravo de instrumento.
Após regular trâmite processual foi designada uma audiência de instrução e julgamento para oitiva de testemunhas. Poucos dias antes, me deparei com uma pergunta interessante por parte da neta da autora: "Dra, eu preciso levar minha avó na audiência"? Embora, estivéssemos diante do procedimento comum de rito ordinário, não tendo sido requerido o depoimento pessoal da autora, eu sabia que tecnicamente sua presença não seria necessária. Alguns minutos avaliando os inconvenientes em locomover uma senhora de 91 anos, que praticamente não anda, do bairro de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro para o centro da cidade, onde seria realizada a audiência, respondi que sim, a presença da autora seria fundamental.
No dia designado, perante a 14 Vara de Fazenda Pública da Capital, estavam todos lá, inclusive a "velhinha" numa cadeira de rodas. Ao sermos chamados, nos deparamos como o estarrecimento da juíza por termos levado "desnecessariamente" uma senhora tão idosa à audiência. Contudo, colhidos os depoimentos das testemunhas, a juíza, (utilizando-se da prerrogativa constante do § 4 do artigo 273 do CPC que permite ao juiz conceder, revogar ou modificar a tutela antecipada a qualquer tempo) dirigiu-se ao promotor de disse "Eu vou conceder a tutela antecipada, senão ela não recebe"!
De fato, na própria audiência, a juíza revogou a decisão denegatória e concedeu a tutela antecipada para que a autora pudesse começar a receber antes do final do processo.
Não teria a "desnecessária" presença da autora contribuído para a formação do convencimento da juíza? Tecnicamente, nossas provas eram frágeis, documentalmente, tudo que tínhamos era uma carteirinha de plano de saúde na qual a mãe aparecia como dependente do filho, nos mais, tínhamos apenas duas testemunhas, que a despeito de terem sido taxativas no sentido de presenciarem os cuidados dispensados à autora pelo falecido, em nada mais puderam contribuir.
Ora, não restam  dúvidas de que a presença da autora, nas condições em que se apresentava, aguçou a sensibilidade do magistrado no que diz respeito a concessão de uma decisão justa. Hoje, o processo já findou em primeira instância, tendo a mesma juíza confirmado na sentença os efeitos da tutela antecipada. Como era de se esperar, a decisão foi objeto de recurso que se encontra pendente de julgamento.
Tudo isso me fez pensar, o que caracterizaria um bom juiz? O bom juiz seria aquele que se limita a aplicar a letra fria da lei ou é aquele que busca  a realização do justo? É claro, que o objetivo das leis deveria ser a realização da justiça, embora as leis nem sempre sejam justas, daí vale transcrever uma velha citação: “Entre uma boa legislação e um bom juiz é melhor optar pelo segundo".