Tino, Julinha, Selma e João, quatro personagens que compõem essa trama surpreendente na qual, todos vivem a mesma realidade sob percepções bem diferentes. Tino é marido de Julinha e genro de Selma, mãe de João e de Julinha. Nosso herói Tino é um personagem marcado por tragédias familiares (quase abusado sexualmente na infância e punido por machucar o agressor, criado com a madrasta que tem um caso com seu irmão). É um pintor decadente de meia idade, que busca nas mulheres, ou melhor, no sexo, uma fuga para suas frustrações.
Tino se casa com Julinha, mas passa a nutrir secreta paixão por Selma, uma mulher meia idade, linda, razoavelmente abastada e mal-amada, que corresponde secretamente ao sentimento do genro. O interessante, contudo, é que Tino e Selma são personagens tão complexos que todas as suas atitudes são interpretadas de forma contrária sob os pontos de vista de ambos. Tino se sente tão frustrado e com baixa autoestima que julga não ser merecedor de nada além do desprezo de Selma. Selma, por sua vez, é uma mulher acostumada a ser vista apenas como objeto sexual para os homens e vive entre o desejo pelo genro e a culpa por, de certa forma, estar traindo a filha. Igualmente, julga não ser correspondida por Tino.
João por sua vez, também é filho de Selma e embora não tenha sido o predileto foi criado com o amor da mãe e o desprezo do pai. Cresce submerso em diversos conflitos desenvolvendo em certo ponto "síndrome de Édipo" pela mãe.
É bastante interessante que Selma e Tino ignorem a reciprocidade de seu desejo, que é conhecido por João e pela própria Julinha, mulher de 20 anos e saúde frágil que acaba morrendo no decorrer da história, deixando o caminho livre para os nossos protagonistas, que mesmo assim, jamais se realizam.
A grande mensagem desse livro, ao menos sob o meu ponto de vista, é que a mesma realidade pode ser interpretada ou vivida de formas diferentes dependendo da compreensão de seus protagonistas. Em verdade, somos todos personagens, somos todos protagonistas de nossas vidas reais e agimos e nos comportamos de acordo com nossas próprias percepções da realidade, não raro, equivocadas. Viveríamos certamente melhor, se encarássemos que nada pode ser menos absoluto do que a verdade.
Tino pensa sobre o comportamento de Selma:
"...Na escala da minha cobiça, logo depois dos braços e dos olhos, vinham as pernas dela, fortes, cheias. Eu preferia qualquer coisa de abominável na minha vida, menos que ela suspeitasse da realidade do meu desejo.
Lá sei por quê, nunca imaginou o quanto poderia me excitar . Com a vida em comum que levávamos, muitas vezes a vi quase nua. Sentava diante de mim como seu eu fosse uma criança ou um impotente. Uma tarde, quando estava de saída, ao chegar à porta, levantou a saia para ajeitar a meia que se desprendera da liga. Suas pernas eram monumentais quando usava saltos altíssimos....Eu a comia com os olhos, ela nem olhava para trás..."
João interpreta o comportamento da mãe:
"Eu fingia ler o tal relatório sobre a situação do campesinato no Nordeste - era um dos temas recorrentes no Partido - mas percebia tudo. A mãe desceu, a saia colante estourando de carnes, Tino olhou desvairado para o corpo dela, envolvendo-o num desejo feroz, cheio de ódio.
Antes de sair - e como sempre fazia quando Tino estava perto - levantou a saia a pretexto de ajeitar a cinta-liga que prendia as meias. Tino bebeu um gole de uísque enquanto olhava aquelas pernas, ela fazia aquilo para provocá-lo. Ambos me ignoravam e a mãe exagerou ao levantar a saia, via aquela parte nua de coxas, não cobertas pelas meias que subiam até um pouco acima dos joelhos. Naquele instante senti um calor estranho de mim. Descobri, com nojo, que era capaz de desejar a mãe..."
Selma se comporta e anseia:
"...Fingia sempre uma atitude indiferente, ou entediada. Era importante que ele não suspeitasse. Que ignorasse o meu desejo, que eu o queria para mim com as minhas forças, as naturais e as artificiais..."
"Depois da morte de Julinha, numa primeira avaliação julguei-o livre para mim. Eu o tinha de certo modo, seria uma questão de tempo e oportunidade.
O tempo passou e a oportunidade não veio. Toquei para frente - foi a forma de esquecer, de não andar para trás..."
Bom, muito bom analisar a mensagem que o autor nos transmitiu, contudo, além da mensagem evidente o autor nos mostra também que possui conhecimentos jurídicos prévios... Vejamos:
Primeiramente, é importante considerar que Selma é sogra de Tino, marido de Julinha que vem a falecer. Selma e Tino poderiam se casar? Bem, juridicamente, é certo que jamais poderiam concretizar uma relação através do casamento. É que de acordo com o artigo 1.521, inciso II do Código Civil “não podem casar os afins em linha reta”. Já, o § 2 do artigo 1595 é expresso ao dispor que “Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável”.
Pois bem, o parentesco pode ser natural ou por afinidade, sendo certo que o parentesco natural é decorrente de laços sanguíneos e o parentesco por afinidade decorrente de laços legais. Pais e filhos são parentes consangüíneos, portanto, ligados por um parentesco natural. Já, sogras e genros são parentes por afinidade, ou seja, seu parentesco se originou por uma causa legal que foi o casamento de seus filhos. Tais pessoas, uma vez ligadas, seu parentesco não se extinguirá nem mesmo com a dissolução do casamento.
Vale lembrar que parentes em linha reta são aqueles ligados pela relação ascendente e descendente. Pais e filhos são parentes em linha reta.
Já, parentes colaterais, são aqueles que descendem do mesmo tronco, mas que não descendem um do outro. Irmãos, portanto, são parentes colaterais.
Percebemos que o impedimento matrimonial se refere apenas a parentes em linha reta, sogros e genros. Na linha colateral, uma vez dissolvido o vínculo, poderão ex-cunhados, por exemplo, se casar livremente. Ana é casada com João irmão de Marcos. Ana, uma vez divorciada de João é livre para casar com Marcos.
Direito Sucessório
A contribuição de nossos heróis não para por aí. Dêem uma olhada no seguinte trecho, no qual Selma comenta:
“Depois que Julinha morreu, ele (Tino) quis ir embora, montar um apartamento para nele se instalar com suas telas e tintas. O advogado aconselhou-nos a não abrir o inventário, seriam necessários dois processos, o de André, que deixara bens para Julinha, e o da própria Julinha. O melhor seria não mexermos no monte, renderia mais, não haveria impostos a pagar. Eu recebia todas as rendas, quis dividi-las com ele. Não aceitou. Nada queria receber da parte que cabia à mulher dele.”
Vejam, André era pai de Julinha, personagem coadjuvante que morre no decorrer da narrativa. Pois bem, se André era marido de Selma e pai de Julinha e João, é óbvio que essas três pessoas seriam seus herdeiros. Ao que o livro indica não foi aberto inventário de André, por isso, todos os bens por ele deixados permaneceram em condomínio, ou seja, passaram a pertencer aos três herdeiros conjuntamente. Metade de tudo para Selma e a outra metade divida entre os irmãos.
Com a morte de Julinha, que não deixou filhos, de que forma se faria a sucessão? Considerado seu casamento com Tino, nos termos do artigo 1.829, CC, a sucessão legítima se defere numa ordem segundo a qual, morrendo uma pessoa casada e sem filhos, consideram-se seus herdeiros os ascendentes e o cônjuge. Portanto, são herdeiros de Julinha, Selma e Tino.
Contudo, no caso do livro, para que fosse realizada a divisão justa de bens seria preciso definir com exatidão o montante dos bens de Julinha, o que somente seria possível computando-se os bens que caberiam a ela pela herança de seu pai, daí, a necessidade de dois processos, o que hoje se faz através do que chamamos de inventário conjunto. Certamente seria bastante trabalhoso e envolveria o pagamento impostos como ITD (imposto de transmissão sobre doação e causa mortis”), além de proporcionar uma provável briga pela venda de bens e divisão dos montantes.
E quanto aos rendimentos dos bens? Selma deveria de fato, dividi-los com Tino? Certamente, se tais rendimentos forem provenientes de bens que seriam herdados por Tino, a divisão seria medida perfeitamente justa.
Por certo, a orientação de nosso advogado fictício de optarem pela não abertura do inventário traz vantagens e desvantagens à família. Se por um lado, retarda o pagamento de impostos e garante o rendimento dos bens, por outro lado, mantém esses bens em condomínio, prolongado-se um perigoso vínculo entre pessoas que não mais mantém nenhuma relação, como sogros e genros, além, é claro, de desvalorizar os bens que não podem ser regularmente vendidos sem a abertura do inventário.
Por hoje é só, esperam que tenham gostado.