terça-feira, 15 de março de 2011

TRIBUNAL DE EXCEÇÃO X DITADURA - SADDAM HUSSEIM JULGADO POR UM TRIBUNAL DE EXCEÇÃO?

Saudações amigos blogueiros! Primeiramente gostaria de agradecer as contribuições e comentários a respeito da postagem “TRIBUNAL DE EXCEÇÃO X EXECUÇÕES SUMÁRIAS”. A repercussão foi bastante positiva.

Muito bem, nas últimas postagens nós falamos a respeito de ditadura a partir da obra de Graciliano Ramos que em Memórias do Cácere, nos retratou o Brasil de 1936 sob a ditadura do governo Vargas. O artigo teve menos repercussão do que merecia, mas acreditem, se temos visto que é possível aprender Direito a partir da Literatura Clássica, muito mais será, aprender História e não esqueçam que o tema Tribunais de Exceção tem tudo a ver com ditadura.

O que acontece num país em época em de ditadura? O que acontece com os direitos e garantias individuais? No caso do Brasil de 1936, vimos que houve a decretação do Estado de Sítio, no qual certas garantias constitucionais ficam suspensas, o que mesmo assim, não permite ao Estado atentar contra a vida e integridade física dos cidadãos como o foi o caso de nossa ditadura, como, aliás, acaba sendo o caso de qualquer ditadura.

Hoje gostaria de continuar aprofundando esse tema a partir de um comentário muito sagaz postado por um dos seguidores do blog. Vejam, recebi uma mensagem indagando se o julgamento de Saddam Hussein se enquadraria numa hipótese de Tribunal de Exceção. Confesso que eu mesma não lembrava desse caso como exemplo, mas, através de uma pesquisa, ainda que superficial, nós vemos perfeitamente que Saddam Hussein foi julgado por um Tribunal arbitrário. É interessante a questão, parece ironia que o ditador tenha tido o mesmo julgamento duvidoso que durante tantos anos de ditadura impôs ao povo.

Na verdade, o referido ditador foi julgado por um Tribunal Especial Iraquiano pouco após a invasão dos Estados Unidos. Ora, ora, um Tribunal Iraquiano sob o domínio americano teria isenção para julgar Saddam Hussein pelo cometimento de crimes de guerra?
Em primeiro lugar, é preciso atentar para a fragilidade do judiciário iraquiano depois de tantos anos de desmandos e arbitrariedades do governo. Depois, precisamos atentar para o fato de que julgadores iraquianos, dependendo de sua posição favorável ou desfavorável à postura do ditador, provavelmente seriam tendenciosos. E por fim, precisamos considerar ainda o fato de que o julgamento fora encomendado pelos Estados Unidos, cujo objetivo não era outro, senão, legitimar a execução do ditador por motivos inúmeros.
 

A QUESTÃO DO TRIBUNAL DE EXCEÇÃO NO PANORAMA MUNDIAL ATUAL – JULGAMENTO DE SADDAM HUSSEIM X JULGAMENTO DE MUAMAR KADAFI
 


Dêem uma olhada nessa notícia:


O Conselho de Segurança da ONU, presidido pela brasileira Maria Luiza Viotti, decidiu por unanimidade congelar os bens de Muamar Kadafi e de cinco integrantes da família do ditador líbio, assim como impor barreiras à viagens internacionais do ditador, de nove integrantes da família e de seis pessoas próximas ao governo. Foi aprovado ainda um embargo às armas e enquadrar as ações do governo no Tribunal de Haia.

Kadafi e Saddam tem em comum o fato de terem seus governos marcados pela ditadura fortemente opressiva. Haverá alguma semelhança na punição imposta a ambos? Tendo em vista que as notícias a respeito dos atos do governo libanês tem chocado tanto a comunidade internacional, por que não liderar uma invasão no país como ocorreu com o Iraque?? Alguém se faz essas perguntas?


QUESTÃO DE SOBERANIA


A situação dos referidos países (Iraque e Líbia) é bem diferente. O Iraque vivia sob uma ditadura, mas o simples fato de o país viver sob tal regime não justifica a intervenção de nenhum país estrangeiro em respeito ao princípio da soberania, em razão do que, os Estados Unidos precisavam de alguma justificativa que “legitimasse” uma intervenção. De acordo com as diretrizes da ONU a intervenção armada nos países somente se justifica em casos nos quais esteja em risco a segurança e paz mundial, e que melhor justificativa do que a suspeita de produção de armas nucleares?

Hoje, a situação de caos enfrentada pela Líbia se deve a um conflito interno, o que chamamos de guerra civil, grosso modo, quando um grupo de esquerda dentro do próprio país se opõe violentamente ao governo e se inicia uma série de combates armados para o domínio da nação. Uma situação assim descrita, não autoriza a intervenção direta de outros países, contudo, a truculência com a qual Muamar Kadafi vem tratando os opositores a seu governo tem causado tamanha indignação na comunidade internacional, que embora não haja justificativa para uma intervenção armada direta na Líbia, os países tem se reunido para adotar medidas que indiretamente limitem as ações do ditador.

Dentre as sanções impostas a Muamar Kadafi se encontra a determinação do bloqueio de seus bens. Segundo notícias, Muamar é detentor de vasto patrimônio em diversos países, dentre os quais a Espanha, que já declarou a indisponibilidade dos bens do ditador que se encontrem sob território espanhol.
 

TRIBUNAL DE HAIA – A QUESTÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA PUNIÇÃO DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
 


A notícia em comento termina com uma informação bastante interessante. O que significa “Enquadrar as ações do governo no Tribunal de Haia”? Muitos talvez não saibam que em 1998 foi criado o Tribunal Penal Internacional, cuja sede se encontra em Haia, na Holanda. Comentamos em outras postagens a respeito do Tribunal de Nuremberg, criado com o objetivo único de julgar os nazistas pelos crimes de guerra e vimos que se caracterizou como verdadeiro Tribunal de Exceção. Comentamos a respeito do julgamento de Saddam Hussein, cuja legalidade foi obviamente duvidosa e agora passamos a comentar o Tribunal Penal Internacional.

A necessidade de conferir alguma espécie de punição aos infratores das normas é um sentimento intrínseco ao ser humano. Quem já não se revoltou ao ouvir histórias de impunidade por um crime cometido na própria cidade, no próprio bairro, na própria família?  Pois bem, tal necessidade de punição não deve se restringir apenas a determinadas hipóteses. É preciso que criminosos com poder muito maior de destruição do que os ladrões, assaltantes, traficantes, como é o caso de governantes, também possam ser punidos.

O Tribunal de Haia vem fazer exatamente esse papel, é a primeira instituição permanente criada por amplo acordo internacional para não deixar impunes os perpetradores de crimes contra a humanidade, como o genocídio, crimes de guerra, agressão, perseguições por motivo de etnia ou religião, dentre outros. Sua competência é limitada a países que ratificaram o Tratado de Roma (documento que deu origem ao Tribunal). Os Estados Unidos, não ratificaram o Tratado. Por que será?? Temeriam os americanos um julgamento por possíveis crimes de guerra?

A Líbia não é signatária do Tratado de Roma, mesmo assim, Muamar Kadafi poderá ser julgado pelo Tribunal de Haia caso a questão seja levada ao Tribunal pelo Conselho de Segurança da ONU. Essa é exatamente a questão retratada na notícia. Uma vez levado o caso ao Tribunal Penal Internacional, os responsáveis pelos excessos cometidos na Líbia já podem imaginar que não será tão fácil se esquivar de pagar pelas atrocidades que vem cometendo.

Quais seriam as leis aplicáveis pelo TPI? Em princípio, o agente deve ser julgado em seu próprio país, ou seja, um genocida brasileiro, por exemplo, deverá ser julgado no Brasil e de acordo com as leis brasileiras. Contudo, quando não houver empenho do Brasil em puni-lo ou quando for impossível tal punição pelo país, poderá ser requisitado o julgamento do criminoso pelo Tribunal Penal Internacional e nesse caso prevalecerão as leis internacionais. É o que chamamos de princípio da complementaridade, ou seja, o indivíduo só é julgado pelo TPI quando seu próprio país não tiver interesse ou não puder puni-lo. O artigo 77 do Tratado de Roma define as penas aplicáveis aos crimes descritos no artigo 5° do mesmo estatuto, dentre as quais, se encontra a prisão perpétua.

Como o TPI é provocado? Pela denúncia de algum dos países membro (lembrando que o TPI, em regra, só julga criminosos oriundos de países membros) ou por denúncia do Conselho de Segurança da ONU, hipótese em que poderá julgar quaisquer criminosos, ainda que não oriundos de países signatários. (Caso da Líbia)

Os acusados tem direito à defesa através de advogados, pois o TPI conta com uma lista de advogados credenciados que podem assisti-los, ressalvando seu direito de apresentar seus próprios patronos.

Pois bem, com base em todas as informações que já temos é possível discutir. As ações do governo da Líbia uma vez levadas ao Tribunal de Haia, não conferirão a seu responsável o mesmo julgamento dispensado a Saddam. Por certo, um Tribunal cuja criação não se deu para o julgamento de um caso específico e que submete seus jurisdicionados a leis preestabelecidas e com amplo direito de defesa, merece ser legitimamente reconhecido, não se assemelha a um Tribunal de Exceção nos moldes do que temos comentado nos últimos dias.


Bom, por hoje, vamos encerrar lembrando que é muito importante acurarmos cada vez mais o senso crítico diante de tudo o que nos é passado e se possível, por que não tentar apreender noções básicas sobre Direito a partir do cotidiano? Antes de tudo, devemos lembrar que senso crítico e a busca por conhecimento pode ser questão também de cidadania.


9 comentários:

  1. Sensacional. Suas postagens tem ajudado muito a ampliar meu interese nesses assuntos. Obrigado Juliana.

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  2. Muito bom o artigo, meus parabéns à autora.

    Esse tópico me lembra uma outra questão: o TPI é uma instituição notável para o progresso da humanidade, sem dúvida, mas será que o Brasil pode ser membro dele? Estamos falando de um tribunal que não prevê a retroatividade da lei penal mais benéfica (ele o faz na verdade, mas de um modo mais limitado do que o estatuído pela CF) nem o tribunal do júri para crimes dolosos contra a vida. Outra violação à CF é o fato dele prever a possibilidade de pena perpétua.

    Não é o tribunal, a despeito de seus propósitos, inconstitucional em relação ao ordenamento jurídico brasileiro?

    Fica a questão.


    Abraço,
    Bruno

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  3. Muito obrigada Bruno, sua contribuição é muito importante. Quanto a seu questionamento não entendo haver qualquer inconstitucionalidade em relação a lei brasileira. O TPI é complementar, por isso, em regra, o governante será julgado de acordo com a legislação brasileira. Apenas na impossibilidade ou desinteresse de punição frente as nossas leis é que o indivíduo poderá ser levado ao TPI. Uma vez assinado o Tratado, o próprio país concorda que na hipótese de impossibilidade de punição do agente ele poderá ser julgado pela instituição internacional segundo as regras e penalidades previstas no TRatado de Roma. Haveria inconstitucionalidade a meu ver, se o indivíduo fosse julgado no Brasil por um tribunal comum sob as regras do TPI, aí sim, estaria havendo inconstitucionalidade.

    Abraços.

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  4. Parabéns pelo artigo! Bem oportuna a reflexão nele aventada. Abraços!

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  5. Obrigado pela resposta, Juliana. Ela aborda a questão por um lado do qual não tinha ouvido falar ainda.

    Mas eu ainda não estou convencido. Toda a ordem jurídica deve se subordinar à CF, o que inclui os tratados internacionais. Se ela veda determinadas opções (como prisão perpétua) ou impõe outras (como retroatividade da lei penal mais benéfica e o tribunal de júri no caso de crimes dolosos contra a vida), toda a legislação deve seguir esses preceitos. Permitir exceções como a do TPI seria sabotar a CF.
    Por exemplo (não sou muito entendido no Direito Internacional), não seria possível o Brasil voluntariamente deixar de julgar um acusado do cometimento desses crimes em nome "de uma maior participação da comunidade internacional", ou algo do gênero, de modo que o País se abstenha de agir para que o "mundo" dê o exemplo? Pressuponho aqui mesmo a melhor da intenções (a de buscar justiça, ou algo nessa direção).
    Outro jeito de se sabotar o texto constitucional é simplesmente revogar toda lei interna que que trate desses crimes e posteriormente assinar um tratado com "jurisdições complementares", de modo que, na prática, o complementar seja a regra.
    Outro método para flanquear a CF seria simplesmente de modo proposital fazer corpo mole frente a apuração de um crime relacionado a uma jurisdição complementar, de modo que o tribunal internacional declare estar assumindo o caso.
    Algumas dessas situações podem ser um tanto quanto difíceis de acontecer, mas apenas por enquanto. Caso um governo autoritário assuma o poder, ele pode muito bem se valer dessas manobras para ignorar as garantias constitucionais e ir atrás dos cidadãos que considerar subversivos. No mundo atual, governos autoritários precisam ao menos de uma imagem de legalidade. Um exemplo de tal foi a nossa recente ditadura militar, que tentava geralmente ao menos mater alguma aparência de legalidade.
    Por essas razões, creio que uma instituição como o TPI seja inconstitucional. Abre-se uma brecha muito perigosa para o futuro.

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  6. No que tange às cláusulas pétreas, a CF foi muito clara: é preferível que um criminoso saia impune a que se imponham as opções vedadas ou que se retirem aquelas que foram impostas. Isso porque historicamente se viu que é preferível haver uma injustiça circunstancial a um sistema que se utiliza de métodos que diminuam excessivamente a liberdade de cidadão, ou que os prive de determinados direitos.
    De outro modo, seria muito fácil mudar a CF, com legislação de nível ordinário ainda. Seria apenas assinar um tratado com um Estado com um governo autoritário; por exemplo, seria só assinar um tratado com a Líbia pré-revolucionária. Assim, seria possível burlar todas essas garantias individuais. Poder-se-ia assinar um tratado com um regime desses de modo que se permita pena de morte em determinados casos, como homicídio e estupro. Ou com a China, permitindo-se que corruptos recebam a pena capital. Tudo seguindo a mais "perfeita legalidade" e com amplo apoio popular.
    Outro exemplo seria assinar um tratado com os EUA estabelecendo uma jurisdição anti-terror, onde se permitiria o uso de tortura para a obetenção de informações.

    Por isso tudo, creio ser muito difícil sustentar a constitucionalidade do TPI. Quando se analisa a constitucionalidade de um ato normativo, principalmente em relação a uma cláusula pétrea, temos que também sempre pensar em como alguém mal-intencionado pode usar a norma sob análise para sabotar o texto constitucional. E considerar o TPI constitucional, como eu disse, é abrir uma brecha muito perigosa.

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  7. Há um outro detalhe que, também, não se costuma discutir. O que significa exatamente o art. 80 do tribunal?

    "Artigo 80

    Não Interferência no Regime de Aplicação de Penas Nacionais e nos Direitos Internos

    Nada no presente Capítulo prejudicará a aplicação, pelos Estados, das penas previstas nos respectivos direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados que não preveja as penas referidas neste capítulo."


    Ele é um tanto quanto obscuro. Alguém saberia interpretar a segunda parte "...a aplicação da legislação de Estados que não preveja as penas referidas neste capítulo"?

    Talvez queira dizer que, se o Estado não tenha como penas as previstas no estatuto do TPI, o tribunal se absterá de aplicá-las, passando a utilizar as sanções previstas no Direito interno. Mas não estou muito convencido dessa interpretação. Talvez essa parte meramente sirva para confirmar a primeira, numa declaração mais política do que jurídica. Basta lembrar que muitos Estados vem com bastantes reservas o TPI. Muitos até hoje não aderiram a ele. Considerando isso, essa parte do artigo pode muito mais ser uma declaração política no sentido de acalmar os ânimos e desconfianças de Estados relutantes a aderir ao pacto.
    No fundo, teremos que esperar para ver como o TPI se comporta em relação ao artigo; se ele o considera no sentido da minha primeira interpretação, não haverá choque em relação à CF, e o tratado de adesão é válido; se ele o considera em outra direção, de modo que se ignorem os nossos direitos e garantias individuais, o tratado é inconstitucional, de modo que o STF deve assim o declarar imediatamente, bem como deve o Executivo denunciar o documento.


    Espero ter contribuído para o debate

    Abraços, e uma boa semana a todos,
    Bruno

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  8. O TPI pode "invadir" um país não signatário para buscar um acusado?

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  9. Olá Alexandre. Bom, não sou especialista no assunto, mas, a exemplo das determinações anteriores do TPI, como a prisão do presidente do Sudão em 2009, não se pode invadir outros países na busca do acusado. O mandado de prisão, em princípio, deve ser cumprido pelo país no qual o acusado esteja refugiado. Sua pergunta pode ser objeto de pesquisas mais aprofundadas, mas no momento, esse é o racicíonio.
    Obrigada pela contribuição.
    Abraços.

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