sexta-feira, 4 de março de 2011

MEMÓRIAS DO CÁRCERE - RETRATO DO BRASIL NA DITADURA

Olá amigos blogueiros, vamos falar de direitos e garantias individuais para variar um pouquinho? Há alguns anos li dois volumes do livro Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e somente hoje percebi o quão contributiva foi a sua leitura, talvez os leitores não se lembrem de Graciliano por tal obra, mas certamente o lembrarão por Vidas Secas, um de seus trabalhos mais conclamados. Romances à parte, muitos irão concordar que a própria vida de Graciliano Ramos já renderia matéria para uma obra e tanto. Espera aí. Renderia? Existe um problema na conjugação do verbo. Parte da Vida de Graciliano, de fato, rendeu uma obra riquíssima historicamente, cujo título não poderia ser mais apropriado ao conteúdo. Pois bem, vamos à Memórias do Cárcere.

Para quem se interessa por história do Brasil recomendo como leitura obrigatória. Nessa obra não teremos a figura do protagonista fictício que enfrenta percalços ao longo de uma história cujo final quase sempre é feliz. Pelo contrário, o herói da nossa história é um personagem da vida real e os fatos relatados, embora, em alguns pontos, pareçam retirados de um filme de terror, caracterizam a realidade vivenciada por nosso protagonista por quase dois anos.

A história se passa em 1936, início do período da ditadura de Getúlio Vargas, ano em que Graciliano Ramos, acusado de comunista, foi simplesmente retirado de sua casa em Alagoas e mantido preso, passando por diversas carceragens, dentre elas a temida Colônia Correcional no Rio de Janeiro. (Ilha Grande).

O interessante é que na época em que houve a prisão, Graciliano não era comunista, seu único ato de comunismo teria sido a edição do romance São Bernardo, no qual fazia denúncias sociais. O protagonista do livro era um proprietário de terras que vivia de desmandos e impunidade. Certamente, alguém que não se mostra simpático a desmandos  consistia em grave ameaça política a Getúlio Vargas.

Após avaliar as desventuras de Graciliano Ramos, brilhantemente narradas em Memórias do Cárcere, que proporciona ao leitor a sensação de presenciar as cenas descritas, me perguntei: O que teria acontecido com nossas garantias constitucionais na época da ditadura?

Por certo, os jovens advogados, que aprendem premissas segundo as quais a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém será preso, senão em flagrante delito ou mediante ordem judicial, nem será processado ou sentenciado sem que haja o devido processo legal, dentre tantas outras garantias individuais, terão dificuldade em compreender como foi possível a realização de tantas atrocidades no período de ditadura no país.

A primeira resposta a essa reflexão não é difícil de imaginar, muitos pensarão: Ora, as atrocidades foram possíveis porque as garantias constitucionais foram suspensas, é óbvio. Ok, eu respondo, as garantias constitucionais foram suspensas, mas será a questão tão simples assim? Em 1936, o país contava com a Constituição de 1934, que trazia importantes garantias aos cidadãos. Segue abaixo colacionado as garantias expressas no artigo 113 da referida Carta:


 Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

        1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.
        2) Ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.
(...)
        4) Por motivo de convicções filosófica, políticas ou religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art. 111, letra b.
         5) É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costume. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.
(...)
               8) É inviolável o sigilo da correspondência.
        9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.
21) Ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal, e promoverá, sempre que de direito, a responsabilidade da autoridade coatora.

23) Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões, disciplinares não cabe o habeas, corpus .
        24) A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta.



Conforme se pode observar a Carta Magna de 1934 trazia importantes garantias, como a liberdade de pensamento, proibição a prisão por motivo de convicção filosófica, o devido processo legal, dentre outras. Não teria o leitor curiosidade de avaliar o que levou a situação caótica do país culminando com a suspensão de tais garantias? O que teria acontecido com a legislação pátria para que fossem permitidas prisões tão arbitrárias quanto a de Graciliano Ramos?

Através de uma pesquisa superficial somos remetidos a alguns acontecimentos históricos. Sabemos que Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930, derrubando o governo de Washington Luis através (República Velha) de um golpe de Estado. Pois bem, sob o comando de Vargas o país teve a promulgação da Constituição de 1934, cuja vigência foi bem curta, três anos após, já teríamos a Constituição de 1936.

O mundo vivia um período de grande agitação social sob forte influência do conhecido nazifascismo, nazismo na Alemanha representado por Hitler e fascismo na Itália representado por Mussolini. Tais governos ditatoriais propagavam a centralização do poder estatal e eram muito simpáticos a Getúlio Vargas. Por outro lado, o fortalecimento da União Soviética proporcionava o aumento do movimento comunista no Brasil.
O comunismo é definido como uma ideologia (propostas sociais, políticas e econômicas) que visa a criação de uma sociedade sem classes sociais. Pois bem, sob a justificativa de impedir um complô comunista que ameaçava dominar o país, em meados de 1935, Getúlio Vargas decreta o Brasil em Estado de Sítio.

Agora sim, nós advogados, estudantes ou simpatizantes do Direito, recorremos aos nossos conhecimentos prévios em Direito Constitucional, o que significa mesmo Estado de Sítio? É um instrumento que o Chefe de Estado dispõe em casos extremos tais como grave ameaça à ordem constitucional democrática, ameaça de invasão estrangeira ou calamidade pública para garantir a ordem. É uma circunstância provisória na qual ocorre a suspensão dos direitos e garantias constitucionais dos cidadãos e submete o Poder Legislativo e Judiciário ao Poder Executivo.

Quando um país se encontra em Estado de Sítio admite-se que o Governo tenha atitudes que venham a ferir a liberdade dos cidadãos, tais como a restrição à reunião de pessoas, censura, dentre outras, sendo certo que tal circunstância não permite que o Estado ofenda a vida, integridade física, capacidade civil e cidadania. Até hoje é possível encontrarmos processos nos tribunais movidos por perseguidos políticos ou seus sucessores em razão de abusos cometidos na ditadura, principalmente no período de 1964 a 1985.

Eis que, foi nesse contexto de crise que se instalou a primeira fase da ditadura no Brasil, época que Graciliano Ramos foi preso nos proporcionando através de Memórias do Cárcere uma descrição fidedigna das torturas e humilhações aos quais os presos políticos foram submetidos. A narrativa é interessante em diversos pontos sendo um dos mais chocantes, a meu ver, o da prisão, não porque Graciliano tenha sido agredido fisicamente ou coisa do gênero, mas porque para nós, acostumados a ideia de Estado Democrático de Direito, nos soa monstruosa a notícia de uma prisão como esta.


“...Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta – e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuzo ou mulato, entrou na sala.

- Que demora tenente! Desde o meio-dia estou á sua espera.

(...) – Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer, acho bom levar mais roupa. É um conselho.

- Obrigado tenente.

Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me. D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher um sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: porque vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?.

- Quando quiser tenente.

Saímos da sala e entramos no automóvel, um grande carro oficial.



No decorrer da narrativa, Graciliano prossegue com suas impressões pessoais a respeito do papel do Judiciário em meio a ditadura.


(...) A um canto o advogado Nunes Leite se encolhia, isento de pensar...um pobre vivente cheio de pavor. Ouvira falar de certo em fuzilamento (...).
Tive pena. Porque martirizavam aquele homem, santo Deus?.
(...) O advogado Nunes Leite impetrava hábeas corpus a favor de alguns presos políticos. Vistas as razões, etc., o juiz lançara no requerimento uma penada benigna. (...) e Nunes Leite, embrulhado necessitava hábeas-corpus. Recurso inútil, evidentemente: agora a toga não se arriscaria, considerando isto ou aquilo, a assinar um mandado de soltura. Seria irrisória pretender ela mandar qualquer coisa, mas essa reviravolta desorientava uma alma serena, habituada à petição, à audiência e ao despacho. Certo as ordens

sempre tinham sido aparentes: a judicatura servia de espantalho, e na farda havia muque bastante para desobediência. (...)
(...) Propriamente já não havia direito. A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violavam, que devíamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução, na verdade trabalhavam por ela era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava.



A lei verdadeiramente deixou de existir, o que imperava eram desmandos do governante, não é difícil imaginar a desilusão dos advogados da época. Graciliano Ramos não compreendia o motivo de sua prisão, se comportando, contudo, com surpreendente resignação perante os fatos presenciados. Foi solto cerca de dois anos depois, segundo relatos, graças  à pressão política exercida por outros escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz, e também por causa do prêmio Lima Barreto que recebeu da conceituada Revista Acadêmica, que lhe dedicou uma edição especial com treze artigos e retratos de Portinari e Adami.

Getúlio Vargas seria deposto em 1945 através de um golpe de Estado e exilado em sua cidade natal. Retornaria à presidência, contudo, em 1951 pelo voto popular, período em que governou democraticamente criando grandes empresas estatais como a Petrobrás e Eletrobrás. As medidas de Vargas, considerado nessa época o “o pai dos pobres” não foram bem aceitas pelas elites, levando as forças oposicionistas a exigirem sua renúncia. Desgostoso, Getúlio Vargas suicidou-se em 24 de agosto de 1954. O país viveria novamente longos anos de ditadura no período compreendido entre 1964 e 1985.

 Hoje, na Constituição de 1988, contamos com o artigo 139 que limita expressamente o poder do Executivo na vigência do Estado de Sítio. Contamos com o artigo 60, § 4º da CF que não admite a proposta de emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais, o voto secreto universal e periódico e a separação dos poderes, importante cláusula pétrea. Contudo, é surpreendente como igualmente, hoje, ainda ouvimos quem pondere as vantagens da ditadura, dentre as quais, se encontra a maior sensação de segurança, sentida pelos não opositores do governo.

Após fazer uma análise do que a história nos conta sobre como se desenrolaram os fatos na ditadura é impossível não considerar que Liberdade x Segurança é uma barganha deveras perigosa. Engraçado, isso me lembra o moral de um outro livro muito interessante, chama-se A Revolução dos Bichos e sua mensagem é exatamente essa: Quem abre mão da liberdade em troca de segurança, acaba não tendo nem uma nem outra. Ah, mas essa já é outra história...


3 comentários:

  1. MUITO BOM O ARTIGO. PARABÉNS. ME PERMITO COMENTAR QUE QUANDO NOSSA ÓTIMA JULIANA ADUZ "que Liberdade x Segurança é uma barganha deveras perigosa", CERTAMENTE UTILIZA TAL FRASE DE FORMA EXTENSIVA, AFINAL A ATUAL DEMOCRACIA PETISTA POSSUI CARACTERISTICAS DE DITADURA - ATACA A IMPRENSA QUANDO INFORMA ALGO QUE ARRANHE A IMAGEM DO PARTIDO; USUFRUI DE INSTALAÇÕES PÚBLICAS DE FORMA INDEVIDA (CASO DO EX-PRESIDENTE EM BASE MILITAR); PESSOAS ESTRANHAS AO GOVERNO UTILIZAM PASSAPORTE DIPLOMATICO (CASO DOS FILHOS DO LULA); VALORIZA O POPULISMO CONCEDENDO BENESSES AOS "MISERÁVEIS" MAS NEGA JUSTO REAJUSTE ÀS APOSENTADORIAS E DEMAIS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS POR "FALTA DE CAIXA" - MESMO ESTAS PESSOAS TENDO CONTRIBUÍDO PARA A PREVIDENCIA A VIDA TODA, CUJAS CONTAS VINCULADAS FORAM TUNGADAS PARA CONCESSÃO DE BOLSAS AUXÍLIO QUESTIONÁVEIS; INCENTIVA INVASÃO DE TERRAS DESDE QUE SEJAM DE PARTICULARES; DESVIA RECURSOS (CORRUPÇÃO - MENSALÕES E AFINS, CUJAS INVESTIGAÇÕES NÃO PUNEM NINGUÉM POR TRÁFICO DE INFLUENCIA), ETC. ASSIM FICA A CERTEZA DE QUE HOJE NOSSO PAÍS NÃO POSSUI SEGURANÇA, COM UMA DITADURA VELADA, COM GOVERNO OPRESSOR QUE DESTROI A ALMA E AS ESPERANÇAS DO POVO TRABALHADOR, QUE PAGA SEUS IMPOSTOS E SÃO SURRUPIADOS DE SEUS DIREITOS EM VIRTUDE DE INTERESSES ELEITOREIROS...

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  2. Talvez eu esteja exagerando um pouco, mas acho que essa foi a melhor postagem até agora. A ditadura é um periodo interessante demais de se estudar (mesmo não tendo sido uma época muito boa pra se viver.) O Graciliano foi um dos que deram sorte por assim dizer, mas muita gente dançou feio nessa, e principalmente na outra fase da danada. Você citou a idéia do livro "Revolução dos Bichos". Se vc tiver alguma idéia sobre uma postagem sobre ele, seria muito legal mesmo. No mais, congratulações pra vc por essa última postagem. Foi realmente boa.

    Ps.Muito bom também o comentario do Frederick Vitillio. As massas de manobra estão ai, esperando para serem esclarecidas ou ludibriadas. Que cada um faça delas o uso que melhor lhe aprouver.

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  3. Juliana, você não sabe a importância deste texto para alertar nossa sociedade a respeito dos riscos da instalação de um regime ditatorial.
    A nossa sociedade, há algum tempo, tende a fazer apologias à ditadura, afirmando que naquela época nossas ruas eram mais seguras, nosso ensino melhor e nossas crianças aprendiam a respeitar os mais velhos.
    A verdade é que nossas ruas, casas e escolas poderiam ser mais seguras para aqueles que se enquadravam no perfil de cidadão respeitável, de acordo com os critérios subjetivos do Estado. Aqueles que nada reclamavam, que abdicaram de sua liberdade de pensamento, em princípio, nada tinham a temer.
    Mas as pessoas que pensavam, que poderiam fiscalizar as atividades do Estado e que poderiam fazer valer direitos através dos meios lícitos representavam uma ameaça àquela ordem estatal, mesmo que se ajustassem objetivamente no perfil de cidadão respeitável. Poderia ser um médico, um escritor, um professor, um desembargador ou até um político.
    Os subversivos não eram os assaltantes vagabundos saídos do submundo para aterrorizar nossa sociedade, mas as pessoas respeitáveis que queriam expressar suas ideias e ter seus direitos reconhecidos. Pessoas que foram submetidas a uma condição miserável e degradante apenas por seus pensamentos representarem um prenúncio de que tal regime político estava fadado ao fracasso.
    Tenho absoluta certeza de que, ao lerem o seu artigo, as pessoas que defendem o estado ditatorial chegarão à conclusão de que a segurança que se promete neste tipo de regime, não passa de uma falsa segurança, já que ficamos inteiramente nas mãos do Estado, sem qualquer respaldo legal que nos defenda do próprio Estado.

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