quarta-feira, 30 de março de 2011

INTERROGATÓRIO E DEPOIMENTO PESSOAL – DIFERENÇAS RELEVANTES?


Olá amigos blogueiros, não posso deixar de compartilhar com meus caros seguidores uma experiência vivenciada ontem numa audiência de juizado especial cível...ah...esses juizados.....

Era um caso bem simples, uma cobrança lançada em cartão de crédito referente a um serviço não reconhecido pela titular do cartão. Ação de repetição de indébito movida em face da administradora do cartão e da editora responsável pelo lançamento da cobrança.

O advogado da administradora do cartão, após a audiência praticamente encerrada, insistiu no depoimento pessoal da autora para responder a uma única pergunta: “A senhora poderia esclarecer se em algum momento entrou em contato com a editora responsável pela cobrança?” Era somente isso o que o advogado pretendia perguntar. Diga-se de passagem, que a pergunta soava absolutamente irrelevante. A ilicitude na conduta da empresa estava no simples fato de lançar uma cobrança por serviço não solicitado pela consumidora, pouco importando para o deslinde da causa, se depois de verificar a cobrança a autora entrou ou não em contato com a editora.

Não obstante, além da pergunta do advogado, a juíza começou a fazer uma série de outras perguntas à autora, que a despeito de serem desnecessárias, pois se referiam a informações constantes dos autos, contribuíam e muito para corroborar a ilicitude da empresa. Pois bem, no momento de redigir a ata, a juíza informou que iria fazer constar que o advogado da primeira ré havia requerido o depoimento pessoal da autora e em seguida faria constar os termos do depoimento.

O advogado da empresa, muito educadamente, solicitou que a juíza separasse a pergunta que foi feita por ele das perguntas formuladas pelo juízo ao argumento de que o escritório poderia questionar sua atuação no sentido de ter realizado perguntas não pertinentes a defesa da empresa. Indignada, a juíza disse que seria impossível, pois ela poderia fazer qualquer pergunta que julgasse pertinente ao depoimento. Contudo, achei que o advogado da empresa, apesar da falta de técnica até que estava com a razão. Vejamos.

Bem, quanto a formulação das questões, a juíza agiu corretamente. Nos termos do artigo 130 do Código de Processo Civil, o juiz pode ordenar a produção de provas que considere necessárias. Contudo, entre o depoimento requerido pelo advogado da ré e as perguntas realizadas pelo juízo existia uma diferença muito simples, retratavam duas modalidades de prova distintas.

O depoimento pessoal é uma modalidade de prova que precisa ser requerida por uma das partes e seu objetivo é induzir a uma possível confissão. Uma batida de carro, por exemplo, na qual se pretende provar de quem é a culpa, o depoimento pessoal da parte pode ser de grande utilidade para seu ex adverso que pode realizar perguntas acerca dos detalhes do acidente as quais podem levar o depoente a deixar escapar informações, não raro, omitidas pelo advogado elaborador da peça. Pois bem, uma vez cometido o erro, podemos obter uma confissão. Daí a importância do depoimento pessoal em alguns casos e daí também a necessidade de requerimento da parte contrária.

Já o interrogatório, é uma modalidade de prova que pode ser ordenada de ofício pelo juiz em qualquer estado do processo, independe de provocação das partes. Serve para que o juiz esclareça pontos obscuros do caso ouvindo a narrativa diretamente da parte.

A solução para a situação do advogado que se complicaria perante o escritório era muito simples. Bastava que chamasse atenção para diferença das modalidades de prova utilizadas na instrução e solicitasse a redação da ata de modo a constar que em depoimento pessoal a autora fora indagada acerca de determinado fato e em interrogatório determinado pelo juízo respondeu acerca de outros fatos questionados.

No tocante a minha participação como espectadora, quedei-me inerte diante da discussão, afinal, não julguei conveniente me posicionar de modo a favorecer meu ex adverso. Além disso, percebi que o advogado pretendia mesmo era parecer espertinho “Vou perguntar se a autora entrou em contato com a editora e ela responderá que não”. Ora, essa resposta era bem óbvia, pois todo mundo sabe que nesse tipo de situação o consumidor entra em contato com a administradora do cartão. Aliás, se o advogado não tivesse plena certeza da negativa sequer cogitaria perguntar. É...nosso herói foi muito esperto, pena que parece ter esquecido que em Direito esperteza e boa técnica processual caminham lado a lado.



terça-feira, 15 de março de 2011

TRIBUNAL DE EXCEÇÃO X DITADURA - SADDAM HUSSEIM JULGADO POR UM TRIBUNAL DE EXCEÇÃO?

Saudações amigos blogueiros! Primeiramente gostaria de agradecer as contribuições e comentários a respeito da postagem “TRIBUNAL DE EXCEÇÃO X EXECUÇÕES SUMÁRIAS”. A repercussão foi bastante positiva.

Muito bem, nas últimas postagens nós falamos a respeito de ditadura a partir da obra de Graciliano Ramos que em Memórias do Cácere, nos retratou o Brasil de 1936 sob a ditadura do governo Vargas. O artigo teve menos repercussão do que merecia, mas acreditem, se temos visto que é possível aprender Direito a partir da Literatura Clássica, muito mais será, aprender História e não esqueçam que o tema Tribunais de Exceção tem tudo a ver com ditadura.

O que acontece num país em época em de ditadura? O que acontece com os direitos e garantias individuais? No caso do Brasil de 1936, vimos que houve a decretação do Estado de Sítio, no qual certas garantias constitucionais ficam suspensas, o que mesmo assim, não permite ao Estado atentar contra a vida e integridade física dos cidadãos como o foi o caso de nossa ditadura, como, aliás, acaba sendo o caso de qualquer ditadura.

Hoje gostaria de continuar aprofundando esse tema a partir de um comentário muito sagaz postado por um dos seguidores do blog. Vejam, recebi uma mensagem indagando se o julgamento de Saddam Hussein se enquadraria numa hipótese de Tribunal de Exceção. Confesso que eu mesma não lembrava desse caso como exemplo, mas, através de uma pesquisa, ainda que superficial, nós vemos perfeitamente que Saddam Hussein foi julgado por um Tribunal arbitrário. É interessante a questão, parece ironia que o ditador tenha tido o mesmo julgamento duvidoso que durante tantos anos de ditadura impôs ao povo.

Na verdade, o referido ditador foi julgado por um Tribunal Especial Iraquiano pouco após a invasão dos Estados Unidos. Ora, ora, um Tribunal Iraquiano sob o domínio americano teria isenção para julgar Saddam Hussein pelo cometimento de crimes de guerra?
Em primeiro lugar, é preciso atentar para a fragilidade do judiciário iraquiano depois de tantos anos de desmandos e arbitrariedades do governo. Depois, precisamos atentar para o fato de que julgadores iraquianos, dependendo de sua posição favorável ou desfavorável à postura do ditador, provavelmente seriam tendenciosos. E por fim, precisamos considerar ainda o fato de que o julgamento fora encomendado pelos Estados Unidos, cujo objetivo não era outro, senão, legitimar a execução do ditador por motivos inúmeros.
 

A QUESTÃO DO TRIBUNAL DE EXCEÇÃO NO PANORAMA MUNDIAL ATUAL – JULGAMENTO DE SADDAM HUSSEIM X JULGAMENTO DE MUAMAR KADAFI
 


Dêem uma olhada nessa notícia:


O Conselho de Segurança da ONU, presidido pela brasileira Maria Luiza Viotti, decidiu por unanimidade congelar os bens de Muamar Kadafi e de cinco integrantes da família do ditador líbio, assim como impor barreiras à viagens internacionais do ditador, de nove integrantes da família e de seis pessoas próximas ao governo. Foi aprovado ainda um embargo às armas e enquadrar as ações do governo no Tribunal de Haia.

Kadafi e Saddam tem em comum o fato de terem seus governos marcados pela ditadura fortemente opressiva. Haverá alguma semelhança na punição imposta a ambos? Tendo em vista que as notícias a respeito dos atos do governo libanês tem chocado tanto a comunidade internacional, por que não liderar uma invasão no país como ocorreu com o Iraque?? Alguém se faz essas perguntas?


QUESTÃO DE SOBERANIA


A situação dos referidos países (Iraque e Líbia) é bem diferente. O Iraque vivia sob uma ditadura, mas o simples fato de o país viver sob tal regime não justifica a intervenção de nenhum país estrangeiro em respeito ao princípio da soberania, em razão do que, os Estados Unidos precisavam de alguma justificativa que “legitimasse” uma intervenção. De acordo com as diretrizes da ONU a intervenção armada nos países somente se justifica em casos nos quais esteja em risco a segurança e paz mundial, e que melhor justificativa do que a suspeita de produção de armas nucleares?

Hoje, a situação de caos enfrentada pela Líbia se deve a um conflito interno, o que chamamos de guerra civil, grosso modo, quando um grupo de esquerda dentro do próprio país se opõe violentamente ao governo e se inicia uma série de combates armados para o domínio da nação. Uma situação assim descrita, não autoriza a intervenção direta de outros países, contudo, a truculência com a qual Muamar Kadafi vem tratando os opositores a seu governo tem causado tamanha indignação na comunidade internacional, que embora não haja justificativa para uma intervenção armada direta na Líbia, os países tem se reunido para adotar medidas que indiretamente limitem as ações do ditador.

Dentre as sanções impostas a Muamar Kadafi se encontra a determinação do bloqueio de seus bens. Segundo notícias, Muamar é detentor de vasto patrimônio em diversos países, dentre os quais a Espanha, que já declarou a indisponibilidade dos bens do ditador que se encontrem sob território espanhol.
 

TRIBUNAL DE HAIA – A QUESTÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA PUNIÇÃO DE CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
 


A notícia em comento termina com uma informação bastante interessante. O que significa “Enquadrar as ações do governo no Tribunal de Haia”? Muitos talvez não saibam que em 1998 foi criado o Tribunal Penal Internacional, cuja sede se encontra em Haia, na Holanda. Comentamos em outras postagens a respeito do Tribunal de Nuremberg, criado com o objetivo único de julgar os nazistas pelos crimes de guerra e vimos que se caracterizou como verdadeiro Tribunal de Exceção. Comentamos a respeito do julgamento de Saddam Hussein, cuja legalidade foi obviamente duvidosa e agora passamos a comentar o Tribunal Penal Internacional.

A necessidade de conferir alguma espécie de punição aos infratores das normas é um sentimento intrínseco ao ser humano. Quem já não se revoltou ao ouvir histórias de impunidade por um crime cometido na própria cidade, no próprio bairro, na própria família?  Pois bem, tal necessidade de punição não deve se restringir apenas a determinadas hipóteses. É preciso que criminosos com poder muito maior de destruição do que os ladrões, assaltantes, traficantes, como é o caso de governantes, também possam ser punidos.

O Tribunal de Haia vem fazer exatamente esse papel, é a primeira instituição permanente criada por amplo acordo internacional para não deixar impunes os perpetradores de crimes contra a humanidade, como o genocídio, crimes de guerra, agressão, perseguições por motivo de etnia ou religião, dentre outros. Sua competência é limitada a países que ratificaram o Tratado de Roma (documento que deu origem ao Tribunal). Os Estados Unidos, não ratificaram o Tratado. Por que será?? Temeriam os americanos um julgamento por possíveis crimes de guerra?

A Líbia não é signatária do Tratado de Roma, mesmo assim, Muamar Kadafi poderá ser julgado pelo Tribunal de Haia caso a questão seja levada ao Tribunal pelo Conselho de Segurança da ONU. Essa é exatamente a questão retratada na notícia. Uma vez levado o caso ao Tribunal Penal Internacional, os responsáveis pelos excessos cometidos na Líbia já podem imaginar que não será tão fácil se esquivar de pagar pelas atrocidades que vem cometendo.

Quais seriam as leis aplicáveis pelo TPI? Em princípio, o agente deve ser julgado em seu próprio país, ou seja, um genocida brasileiro, por exemplo, deverá ser julgado no Brasil e de acordo com as leis brasileiras. Contudo, quando não houver empenho do Brasil em puni-lo ou quando for impossível tal punição pelo país, poderá ser requisitado o julgamento do criminoso pelo Tribunal Penal Internacional e nesse caso prevalecerão as leis internacionais. É o que chamamos de princípio da complementaridade, ou seja, o indivíduo só é julgado pelo TPI quando seu próprio país não tiver interesse ou não puder puni-lo. O artigo 77 do Tratado de Roma define as penas aplicáveis aos crimes descritos no artigo 5° do mesmo estatuto, dentre as quais, se encontra a prisão perpétua.

Como o TPI é provocado? Pela denúncia de algum dos países membro (lembrando que o TPI, em regra, só julga criminosos oriundos de países membros) ou por denúncia do Conselho de Segurança da ONU, hipótese em que poderá julgar quaisquer criminosos, ainda que não oriundos de países signatários. (Caso da Líbia)

Os acusados tem direito à defesa através de advogados, pois o TPI conta com uma lista de advogados credenciados que podem assisti-los, ressalvando seu direito de apresentar seus próprios patronos.

Pois bem, com base em todas as informações que já temos é possível discutir. As ações do governo da Líbia uma vez levadas ao Tribunal de Haia, não conferirão a seu responsável o mesmo julgamento dispensado a Saddam. Por certo, um Tribunal cuja criação não se deu para o julgamento de um caso específico e que submete seus jurisdicionados a leis preestabelecidas e com amplo direito de defesa, merece ser legitimamente reconhecido, não se assemelha a um Tribunal de Exceção nos moldes do que temos comentado nos últimos dias.


Bom, por hoje, vamos encerrar lembrando que é muito importante acurarmos cada vez mais o senso crítico diante de tudo o que nos é passado e se possível, por que não tentar apreender noções básicas sobre Direito a partir do cotidiano? Antes de tudo, devemos lembrar que senso crítico e a busca por conhecimento pode ser questão também de cidadania.


quinta-feira, 10 de março de 2011

TRIBUNAL DE EXCEÇÃO X EXECUÇÃO SUMÁRIA

Semana passada, mais especificamente em 09/03/11 uma notícia trivial na televisão me chamou atenção. Um policial civil foi morto por outros policiais em Salvador. Existem rumores de que o policial estaria extorquindo alguém... Não prestei muita atenção. A truculência e corrupção da polícia não chegam a ser exatamente notícia, fazem parte do nosso cotidiano. Mas, uma coisa me chamou atenção, não lembro muito bem, mas acho que o presidente do sindicato dos policiais civis ao ser entrevistado manifestou sua indignação quanto ao crime proferindo palavras mais ou menos assim:

“Isso é um absurdo, se o policial estava envolvido em corrupção, isso se investiga, isso se pune, não é assim que se resolve, não é assim, pegar a pessoa desprevenida ao volante...”

Interessante, essas palavras foram proferidas com tanta ênfase, que parei para prestar atenção à notícia. Pensei que embora aparentemente trivial, esse fato bem que pode servir de tema a discussão. O policial morto foi vítima de um verdadeiro tribunal de exceção. Sim, aquele tribunal de exceção que aparece lá no inciso XXXVII do art. 5° da CRFB/88 e no qual ouvimos falar já no primeiro período do curso de Direito.

Confesso que demorei muito a compreender o que caracterizaria esse tribunal. Nos livros de Direito, encontramos o clássico exemplo do Tribunal de Nuremberg, aquele criado para julgar os nazistas por crimes de guerra. Foi um tribunal internacional criado em 1945 por britânicos, franceses, americanos e soviéticos, especificamente para julgar os nazistas. Muito embora seja inegável o cometimento de atrocidades durante o nazismo é certo que o julgamento contou com certa de dose de vingança.

Pois bem, admitindo-se o Tribunal de Nuremberg como exemplo de tribunal de exceção podemos tirar duas conclusões: O tribunal de exceção é aquele criado para julgamento de um caso específico e se submete a regras criadas após o cometimento do crime. Tal forma de “justiça” não é admitida no Direito Brasileiro exatamente em razão das referidas conclusões. No Brasil, assim como na maioria dos países, o infrator precisa ser julgado por um tribunal já existente por ocasião do crime, precisa ser julgado e condenado de acordo com leis preexistentes a sua infração. Isso é importante? É fundamental. Um tribunal criado com a finalidade de julgar um caso específico provavelmente será bastante parcial, abrindo a possibilidade de que arbitrariedades aconteçam. Ora, se a “lei” foi criada para um crime específico depois que ele foi cometido, tal crime será passível de qualquer pena, afinal, não se sujeita a regras preestabelecidas.

Nos dias atuais um exemplo interessante de tribunal de exceção pode ser encontrado nas favelas. O julgamento feito pelos traficantes que punem moradores ou dissidentes com torturas e mortes é realizado através de um tribunal de exceção.

O policial baiano não foi morto numa favela e o autor de sua execução também não foi um traficante de drogas, mas é certo que esse policial foi julgado e sentenciado sem qualquer direito de defesa. Foi julgado e sentenciado por um tribunal de exceção. Infelizmente, notícias como essa, são tão comuns em nosso cotidiano, que não paramos para analisar os fatos sob um ponto de vista crítico. Não sei por que razão, tal notícia corriqueira foi capaz de causar tamanha comoção, ou melhor, talvez o mais surpreendente disso tudo seja o fato de que notícias de execuções sumárias nos soem tão corriqueiras.

sexta-feira, 4 de março de 2011

MEMÓRIAS DO CÁRCERE - RETRATO DO BRASIL NA DITADURA

Olá amigos blogueiros, vamos falar de direitos e garantias individuais para variar um pouquinho? Há alguns anos li dois volumes do livro Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e somente hoje percebi o quão contributiva foi a sua leitura, talvez os leitores não se lembrem de Graciliano por tal obra, mas certamente o lembrarão por Vidas Secas, um de seus trabalhos mais conclamados. Romances à parte, muitos irão concordar que a própria vida de Graciliano Ramos já renderia matéria para uma obra e tanto. Espera aí. Renderia? Existe um problema na conjugação do verbo. Parte da Vida de Graciliano, de fato, rendeu uma obra riquíssima historicamente, cujo título não poderia ser mais apropriado ao conteúdo. Pois bem, vamos à Memórias do Cárcere.

Para quem se interessa por história do Brasil recomendo como leitura obrigatória. Nessa obra não teremos a figura do protagonista fictício que enfrenta percalços ao longo de uma história cujo final quase sempre é feliz. Pelo contrário, o herói da nossa história é um personagem da vida real e os fatos relatados, embora, em alguns pontos, pareçam retirados de um filme de terror, caracterizam a realidade vivenciada por nosso protagonista por quase dois anos.

A história se passa em 1936, início do período da ditadura de Getúlio Vargas, ano em que Graciliano Ramos, acusado de comunista, foi simplesmente retirado de sua casa em Alagoas e mantido preso, passando por diversas carceragens, dentre elas a temida Colônia Correcional no Rio de Janeiro. (Ilha Grande).

O interessante é que na época em que houve a prisão, Graciliano não era comunista, seu único ato de comunismo teria sido a edição do romance São Bernardo, no qual fazia denúncias sociais. O protagonista do livro era um proprietário de terras que vivia de desmandos e impunidade. Certamente, alguém que não se mostra simpático a desmandos  consistia em grave ameaça política a Getúlio Vargas.

Após avaliar as desventuras de Graciliano Ramos, brilhantemente narradas em Memórias do Cárcere, que proporciona ao leitor a sensação de presenciar as cenas descritas, me perguntei: O que teria acontecido com nossas garantias constitucionais na época da ditadura?

Por certo, os jovens advogados, que aprendem premissas segundo as quais a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém será preso, senão em flagrante delito ou mediante ordem judicial, nem será processado ou sentenciado sem que haja o devido processo legal, dentre tantas outras garantias individuais, terão dificuldade em compreender como foi possível a realização de tantas atrocidades no período de ditadura no país.

A primeira resposta a essa reflexão não é difícil de imaginar, muitos pensarão: Ora, as atrocidades foram possíveis porque as garantias constitucionais foram suspensas, é óbvio. Ok, eu respondo, as garantias constitucionais foram suspensas, mas será a questão tão simples assim? Em 1936, o país contava com a Constituição de 1934, que trazia importantes garantias aos cidadãos. Segue abaixo colacionado as garantias expressas no artigo 113 da referida Carta:


 Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

        1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.
        2) Ninguém será obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.
(...)
        4) Por motivo de convicções filosófica, políticas ou religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art. 111, letra b.
         5) É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costume. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.
(...)
               8) É inviolável o sigilo da correspondência.
        9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.
21) Ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal, e promoverá, sempre que de direito, a responsabilidade da autoridade coatora.

23) Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões, disciplinares não cabe o habeas, corpus .
        24) A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta.



Conforme se pode observar a Carta Magna de 1934 trazia importantes garantias, como a liberdade de pensamento, proibição a prisão por motivo de convicção filosófica, o devido processo legal, dentre outras. Não teria o leitor curiosidade de avaliar o que levou a situação caótica do país culminando com a suspensão de tais garantias? O que teria acontecido com a legislação pátria para que fossem permitidas prisões tão arbitrárias quanto a de Graciliano Ramos?

Através de uma pesquisa superficial somos remetidos a alguns acontecimentos históricos. Sabemos que Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930, derrubando o governo de Washington Luis através (República Velha) de um golpe de Estado. Pois bem, sob o comando de Vargas o país teve a promulgação da Constituição de 1934, cuja vigência foi bem curta, três anos após, já teríamos a Constituição de 1936.

O mundo vivia um período de grande agitação social sob forte influência do conhecido nazifascismo, nazismo na Alemanha representado por Hitler e fascismo na Itália representado por Mussolini. Tais governos ditatoriais propagavam a centralização do poder estatal e eram muito simpáticos a Getúlio Vargas. Por outro lado, o fortalecimento da União Soviética proporcionava o aumento do movimento comunista no Brasil.
O comunismo é definido como uma ideologia (propostas sociais, políticas e econômicas) que visa a criação de uma sociedade sem classes sociais. Pois bem, sob a justificativa de impedir um complô comunista que ameaçava dominar o país, em meados de 1935, Getúlio Vargas decreta o Brasil em Estado de Sítio.

Agora sim, nós advogados, estudantes ou simpatizantes do Direito, recorremos aos nossos conhecimentos prévios em Direito Constitucional, o que significa mesmo Estado de Sítio? É um instrumento que o Chefe de Estado dispõe em casos extremos tais como grave ameaça à ordem constitucional democrática, ameaça de invasão estrangeira ou calamidade pública para garantir a ordem. É uma circunstância provisória na qual ocorre a suspensão dos direitos e garantias constitucionais dos cidadãos e submete o Poder Legislativo e Judiciário ao Poder Executivo.

Quando um país se encontra em Estado de Sítio admite-se que o Governo tenha atitudes que venham a ferir a liberdade dos cidadãos, tais como a restrição à reunião de pessoas, censura, dentre outras, sendo certo que tal circunstância não permite que o Estado ofenda a vida, integridade física, capacidade civil e cidadania. Até hoje é possível encontrarmos processos nos tribunais movidos por perseguidos políticos ou seus sucessores em razão de abusos cometidos na ditadura, principalmente no período de 1964 a 1985.

Eis que, foi nesse contexto de crise que se instalou a primeira fase da ditadura no Brasil, época que Graciliano Ramos foi preso nos proporcionando através de Memórias do Cárcere uma descrição fidedigna das torturas e humilhações aos quais os presos políticos foram submetidos. A narrativa é interessante em diversos pontos sendo um dos mais chocantes, a meu ver, o da prisão, não porque Graciliano tenha sido agredido fisicamente ou coisa do gênero, mas porque para nós, acostumados a ideia de Estado Democrático de Direito, nos soa monstruosa a notícia de uma prisão como esta.


“...Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta – e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuzo ou mulato, entrou na sala.

- Que demora tenente! Desde o meio-dia estou á sua espera.

(...) – Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer, acho bom levar mais roupa. É um conselho.

- Obrigado tenente.

Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me. D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher um sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: porque vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?.

- Quando quiser tenente.

Saímos da sala e entramos no automóvel, um grande carro oficial.



No decorrer da narrativa, Graciliano prossegue com suas impressões pessoais a respeito do papel do Judiciário em meio a ditadura.


(...) A um canto o advogado Nunes Leite se encolhia, isento de pensar...um pobre vivente cheio de pavor. Ouvira falar de certo em fuzilamento (...).
Tive pena. Porque martirizavam aquele homem, santo Deus?.
(...) O advogado Nunes Leite impetrava hábeas corpus a favor de alguns presos políticos. Vistas as razões, etc., o juiz lançara no requerimento uma penada benigna. (...) e Nunes Leite, embrulhado necessitava hábeas-corpus. Recurso inútil, evidentemente: agora a toga não se arriscaria, considerando isto ou aquilo, a assinar um mandado de soltura. Seria irrisória pretender ela mandar qualquer coisa, mas essa reviravolta desorientava uma alma serena, habituada à petição, à audiência e ao despacho. Certo as ordens

sempre tinham sido aparentes: a judicatura servia de espantalho, e na farda havia muque bastante para desobediência. (...)
(...) Propriamente já não havia direito. A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violavam, que devíamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução, na verdade trabalhavam por ela era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava.



A lei verdadeiramente deixou de existir, o que imperava eram desmandos do governante, não é difícil imaginar a desilusão dos advogados da época. Graciliano Ramos não compreendia o motivo de sua prisão, se comportando, contudo, com surpreendente resignação perante os fatos presenciados. Foi solto cerca de dois anos depois, segundo relatos, graças  à pressão política exercida por outros escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz, e também por causa do prêmio Lima Barreto que recebeu da conceituada Revista Acadêmica, que lhe dedicou uma edição especial com treze artigos e retratos de Portinari e Adami.

Getúlio Vargas seria deposto em 1945 através de um golpe de Estado e exilado em sua cidade natal. Retornaria à presidência, contudo, em 1951 pelo voto popular, período em que governou democraticamente criando grandes empresas estatais como a Petrobrás e Eletrobrás. As medidas de Vargas, considerado nessa época o “o pai dos pobres” não foram bem aceitas pelas elites, levando as forças oposicionistas a exigirem sua renúncia. Desgostoso, Getúlio Vargas suicidou-se em 24 de agosto de 1954. O país viveria novamente longos anos de ditadura no período compreendido entre 1964 e 1985.

 Hoje, na Constituição de 1988, contamos com o artigo 139 que limita expressamente o poder do Executivo na vigência do Estado de Sítio. Contamos com o artigo 60, § 4º da CF que não admite a proposta de emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais, o voto secreto universal e periódico e a separação dos poderes, importante cláusula pétrea. Contudo, é surpreendente como igualmente, hoje, ainda ouvimos quem pondere as vantagens da ditadura, dentre as quais, se encontra a maior sensação de segurança, sentida pelos não opositores do governo.

Após fazer uma análise do que a história nos conta sobre como se desenrolaram os fatos na ditadura é impossível não considerar que Liberdade x Segurança é uma barganha deveras perigosa. Engraçado, isso me lembra o moral de um outro livro muito interessante, chama-se A Revolução dos Bichos e sua mensagem é exatamente essa: Quem abre mão da liberdade em troca de segurança, acaba não tendo nem uma nem outra. Ah, mas essa já é outra história...


quarta-feira, 2 de março de 2011

QUESTÃO DE BOM SENSO

Olá queridos amigos e visitantes blogueiros....ontem compartilhei com vocês uma experiência interessante a respeito da minha convicção de que sentença é questão de sentimento. Pois bem, um dos meus seguidores, postou um comentário com a seguinte afirmativa “Se o teatro for bem feito e combinado, as chances serão melhores do que a mediocridade que impera pelos tribunais...”

Não discordo que algumas audiências de fato, poderiam ser assim consideradas, como verdadeiros teatros. Mas, preciso esclarecer que não me referi a encenações, muito pelo contrário, me referi a lesões reais que muitas vezes não são de fácil comprovação e infelizmente ou felizmente, o que nos faz ganhar ou perder um processo são as provas que conseguimos produzir.

Quanto melhor o autor comprovar o fato constitutivo de seu direito, maiores serão suas chances de ganhar. Por outro lado, quanto melhor o réu comprovar fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor melhores serão as suas chances de escapar à condenação. Contudo, é comum nos depararmos com casos em que o cliente realmente sofreu uma lesão, mas suas provas são frágeis. É nesse tipo de situação que a sensibilidade do julgador, ao analisar os fatos, ou no momento da colheita de prova oral, pode fazer toda a diferença.

Para ilustrar, posso mencionar um processo no qual fui surpreendida com uma sentença de extinção sem julgamento de mérito por ilegitimidade passiva. Vamos compartilhar?

Determinada senhora procurou uma agência de carros e comprou um veículo. No momento de assinar os papéis, assinou todos os documentos que lhe foram apresentados, como normalmente faz o consumidor leigo no afã de fechar o negócio: assina papéis e mais papéis sem ler ou compreender.

Pois bem, passados alguns meses, esse carro apresentou uma série de defeitos que levaram a autora a buscar os reparos junto a agência por força da garantia legal de 3 meses para veículos usados. Pasmem, a agência ao ser contatada, alegou que não arcaria com conserto nenhum, pois num dos papéis assinados a cliente declarava expressamente ter conhecimento de que a venda fora realizada apenas entre ela e o antigo proprietário.

Sim, nos documentos assinados pela autora a agência figurava na negociação como mera intermediária, posto que o veículo somente estava exposto em suas dependências como um favor prestado ao antigo proprietário, amigo do dono da loja. A justificativa da agência foi exatamente essa, no sentido de que a cliente deveria se entender com o antigo proprietário, pois o carro comprado não pertencia a sua frota, somente estava no local como um favor!!

Ora, é óbvio que a consumidora não se conformou com essa alegação e buscou a justiça pleiteando a rescisão do contrato mediante a entrega do veículo ao banco responsável pelo financiamento (ainda tinha esse agravante, o carro era financiado e sendo financiado pelo leasing passa a pertencer ao banco, o que dificulta ainda mais sua devolução), o ressarcimento dos valores despendidos no conserto, bem como a reparação do dano moral. (Ação movida em face da agência e do banco)

Regularmente citado, o banco ofereceu de imediato uma proposta de acordo aceitando a devolução do veículo e a rescisão do contrato de financiamento. Quanto a agência, a quem caberia ressarcir os consertos e arcar com os danos morais...Pasmem queridos, em contestação a agência alegou exatamente a mesma desculpa esdrúxula, ou seja, que não teria o dever de indenizar, pois um dos documentos assinados pela autora evidenciavam que ela sabia perfeitamente estar adquirindo o veículo de um terceiro.

Pois bem, a pior parte: a juíza da 2 vara cível de Santa Cruz, aceitou a alegação e extinguiu o processo em relação a agência por ilegitimidade passiva, entendendo que a autora deveria processar o antigo proprietário.

Como vocês podem imaginar, quase caímos de nossas respectivas cadeiras!!! E a teoria da aparência???? A autora comprou o carro numa agência!!!! Ora, se comprou o carro numa agência é porque pretendia se beneficiar das garantias que a compra de um bem através de uma empresa podem assegurar. E mais, será que a juíza realmente acreditou que a agência intermediaria a venda sem ganhar nada por isso? Ora, se ganhou para vender é claro que tem responsabilidade pelos danos.

Mas tudo bem, recorremos alegando má valoração da prova (docs. acostados pelo réu, que o eximiam de responsabilidade) pleiteando não apenas a reforma da sentença, mas também o próprio julgamento de mérito, por força da teria da causa madura. Com efeito, se o processo estava pronto para ser julgado, com todas as provas já produzidas, não haveria necessidade que o Tribunal, ao reformar a sentença de extinção sem julgamento de mérito, determinasse o retorno dos autos à 1 instância para que nossa juíza pudesse enfim julgar o mérito.

Felizmente, a sentença foi reformada e como requerido, o próprio mérito foi julgado pelo Tribunal e conseguimos a procedência de nossos pedidos. E o mais interessante: Em sua fundamentação a relatora considerou “que não seria crível que uma agência fosse intermediar uma venda sem nada receber”. A relatora considerou ainda que a agência tomou tantas providências no sentido de se eximir da responsabilidade que acabou por comprovar ter participado da venda e se participou, assumiu o risco de arcar com os prejuízos.

Ufa, que alívio! Ainda bem que existe recurso, aliás, ainda bem que podemos (às vezes) contar com julgadores de bom senso, que não se limitam a proferir decisões tão somente com base nas frágeis provas produzidas num processo e vão além, se utilizando de sua própria experiência de vida para proferir decisões justas.

Perceberam? Tecnicamente, a juíza de primeira instância não errou, o réu comprovou ilegitimidade passiva e ela acolheu. Mas, convenhamos, para ser um bom juiz é preciso um pouco mais do que técnica, é preciso principalmente, bom senso.

terça-feira, 1 de março de 2011

SENTENÇA É REALMENTE QUESTÃO DE SENTIMENTO

Vejam, hoje vou fazer uma pausa nas nossas discussões literárias e vou dividir com meus amigos leitores um pensamento recorrente. Ano passado um amigo fez uma pesquisa sobre Direito Alternativo e comentou comigo que sentença significa sentimento, sentença, nada mais seria do que o sentimento do juiz a respeito dos fatos. Hoje eu mesma decidi pesquisar isso, e confirmei o que ouvi de meu amigo sem dar muita importância há tempo atrás. Sentença de fato deriva do latim “sententia” que significa sentimento de “sentire”. Isso é bastante interessante.

O motivo dessas divagações é muito simples, quanto mais eu atuo como advogada, mais me convenço de que sentença é exatamente isso. Quem tiver interesse em ler uma das postagens desse blog intitulada “TUTELA ANTECIPADA É QUESTÃO TAMBÉM DE SENSIBILIDADE” vai compreender perfeitamente o que estou sentindo.

Porém, um pouco em respeito ao leitor mais afoito que talvez não tenha paciência, vontade ou interesse em recorrer a postagem mais antiga e um pouco por vontade minha de dividir parte de minhas experiências com o leitor, ou pelos dois motivos juntos, vou relatar outros casos que me fizeram chegar a conclusão de que sentença é antes de tudo, sentimento. Com efeito, primeiro o magistrado sente de quem é o direito e depois fundamento seu sentimento na lei. Alguém duvida?

Com certeza, sempre alguém duvida, mas essa semana fiz uma audiência no XXVI JEC de Campo Grande, Rio de Janeiro que demonstrou claramente isso. O caso era aparentemente simples, daqueles nos quais nós temos 50% de chances de ganhar e 50% de perder. Mesmo assim, são casos aparentemente simples que mais nos ensinam e nos preparam para atuação profissional.

Meu cliente comprou uma van 0KM e após alguns meses de uso uma série de defeitos começaram a aparecer, a situação se agravou de tal forma que no mês de junho do ano passado o veículo chegou a ficar parado numa oficina a espera de peças por cerca de 25 dias.Ora, quem compra esse tipo de veículo tem por objetivo trabalhar fazendo transporte alternativo de passageiros, logo, o veículo parado, significa perda de dinheiro. Como era de se esperar, a impossibilidade de utilização regular do veículo, acabou por impossibilitar o pagamento das prestações (o veículo foi financiado pelo banco PANAMERICANO), obrigando meu cliente a devolvê-lo amigavelmente ao banco.

Pois bem, após a devolução, o cliente ex-aluno, me procurou apresentando uma série de ordens de serviço que descreviam perfeitamente os consertos e as peças trocadas, e o mais interessante: praticamente todas as peças foram cobertas pela garantia do fabricante.

De imediato, ao analisar tais documentos, percebi que a própria natureza dos defeitos evidencia que o veículo apresentava vícios redibitórios. Contudo, numa das notas constava a informação de que o veículo sofrera uma batida, e justamente a nota que comprova a paralisação do carro por 25 dias estava rasurada justamente no campo da data de entrada e saída. Infelizmente, as referidas notas eram tudo o que dispúnhamos para comprovação das alegações do autor.


Analisados os riscos, optamos por fazer uma ação indenizatória pleiteando lucros cessantes relativos às diárias que o autor deixou de ganhar nos períodos em que o veículo permaneceu na oficina, bem como o indiscutível dano moral sofrido, com a impossibilidade de trabalhar e devolução do carro ao banco por falta de pagamento.

Em princípio, dirigimos nossa ação a uma das varas cíveis, cujo juízo, considerou não ser merecedor da GRATUIDADE DE JUSTIÇA, alguém que dispunha de cerca de R$ 2.000,00 para pagar em prestação de carro. Certamente, o magistrado desconsiderou completamente os fatos narrados quanto a impossibilidade de pagamento e devolução do veículo ao banco. Normal.

Desgostosos, desistimos do processo e recorremos ao Juizado Especial Cível, já muito desanimados com a provável sentença de um juiz leigo, que por certo consideraria que o autor não comprovou de forma contundente a existência de vícios redibitórios, alegaria ainda que num dos documentos constava a informação de que o veículo sofrera uma batida, o que poderia ter ocasionado os problemas, sem considerar que a própria batida poderia ser decorrente do defeito do veículo, enfim...essas sentenças completamente equivocadas que nós vemos por aí nos juizados, em especial na zona oeste.

Entretanto, para nossa surpresa, a audiência de instrução e julgamento foi realizada por um juiz togado, que colheu o depoimento pessoal do autor, avaliou a documentação acostada, permitiu que os advogados se manifestassem e na mesma hora proferiu uma sentença, considerada perfeitamente justa para meu cliente e para mim. De fato, o próprio fabricante em sua contestação preocupou-se tanto em alegar a necessidade de perícia, inépcia da inicial, etc., que acabou por não contestar em nenhum momento a existência ou não dos alegados vícios.

Não sei se estou certa, não tenho a pretensão de ser dona da verdade, mas tenho convicção de que no momento da audiência, o magistrado teve muito mais condições de logo após ouvir as partes e analisar as provas, proferir uma sentença justa, do que se tivesse deixado para proferi-la semanas ou meses após, quando estaria analisando a vida de pessoas como se fossem simples papéis.Voltei ao escritório com a nítida sensação de que sentença é realmente questão de sentimento.